segunda-feira, 14 de maio de 2018

[Crônica] O Crepúsculo da Moral


Hoje fui ao cinema assistir o novo filme dos Vingadores da Marvel, e ontem reassisti um clássico moderno da DC, Watchmen (2009). Creio que atinge o ápice da síntese e da antítese, pois ambos os filmes tratam, simbolicamente, das mesmas questões, o segundo com mais maestria do que o primeiro, o que, no entanto, não anula a sua eficácia de transmitir uma mensagem direta e clara: a falência dos discursos moralizantes. Pois bem, raramente me arrisco à desferir juízos sobre o cinema, prefiro me aventurar nas incursões filosóficas do cotidiano e na ficção fantástica. Porém, algo me chama, me impele à escrever esse texto, uma força da qual preciso ser porta-voz. Para quem for contra os infames spoilers, por favor pare de ler aqui. 

Em verdade vos digo, o Vingadores: Guerra Infinita1 é um clássico filme da Marvel – isto é, você verá ótimas lutas, efeitos especiais exuberantes, tiradas cômicas não tão engraçadas e uma fotografia bem colorida – com exceção de que, ao menos dessa vez, você não saíra sorridente do cinema. No que o filme peca em não representar relações humanas com profundidade, em exageradas tiradas cômicas, em buracos roteirísticos e “forçações de amizade” cênicas, ele acerta na construção do personagem Thanos. Tanto que uma cena digna de ser notada é o momento em que Gamora recorda do seu primeiro contato com Thanos, momento em que ele lhe explica sua filosofia de vida, sua busca por equilíbrio. 

Admito que parte do o que me intriga no Thanos provém do meu profundo senso antimoralismo heroístico. Mas, se olharmos bem, num mundo em que existem heróis com um senso moral irritante, entidades que realmente se sentem representantes do bem comum e de valores burgueses e liberais vigentes desde o Iluminismo e perpetuados a partir da queda da Bastilha em 1789, um ser como Thanos realmente representa uma ameaça. Simbolicamente ele retrata a morte da moral, àquela clássica que valoriza a vida e elege representantes e heróis que perpetuam conjuntos de valores anacrônicos. Thanos emerge como o superhomem que Nietzsche previu. O homem que se elevou além da moral, além dos valores de seu tempo, negou suas travas históricas e avançou, enfrentando à tudo e todos, renegando seus sentimentos em prol do seu objetivo. Do seu ponto de vista, ele lutou por uma verdade mais elevada. 

O superhomem venceu os heróis, venceu os símbolos da moral antiga, liberal e burguesa, com o poder das Joias do Infinito, isto é, metáfora para explicar que nesse momento histórico, no atual pé do século XXI, percebemos que os vitoriosos são os homens sem moral, àqueles que se elevaram além dos inquestionáveis valores compartilhados, pois as engrenagens históricas giram ao seu favor. Nesse momento histórico, a moral compartilhada, com ilusões do bem comum, tende a desaparecer perante a tormenta do individualismo inescrupuloso, da ética da conquista. 
Porém, em sua luta, Thanos só acumulou perdas, dores e agonia. Um profundo sofrimento marca esse homem sem escrúpulos que visa apenas o seu ideal.

Em Watchmen (2009) 2, filme de nove anos atrás da DC, já retrava essa mesma questão. No universo do filme, os heróis são seres humanos comuns, com profundas complexidades psicológicas. Entidades humanas e conflituosas, de carne e osso, longe dos deuses intocáveis (como dois alvos paradigmáticos do meu ódio antimoralista heroístico como Superman e Capitão América), os heróis são maculados pela perversidade, atravessados pela tensão emocional, pelos traumas e pela consciência. Geralmente tanto os filmes como as HQ’s da DC prezam mais pela complexidade psicológica de seus personagens, a atmosfera é sombria, com narrações atormentadas e tramas intrincadas – assim como a paleta da câmera dos filmes da DC, o humor do espectador fica sombria e com vários tons de cinza após uma sessão de seus filmes. 

Apesar do quadro descrito acima, no mundo de Watchmen, os heróis se pretendem representantes do bem comum, essa perspectiva é encarnada pelo personagem Rorschach, detentor de senso moral distorcido, marcado por traumas, ele realmente acredita ser o representante da justiça sem dó, que não se martiriza por utilizar métodos violentos. No caso de Watchmen, me intrigo com esse personagem, o portador da moral distorcida. No final Rorschach é abatido por não compactuar com o assassinato da moral promovido por Ozymandias, seu antigo herói que mata milhões para acabar com a Guerra Fria. A morte de Rorschach é significativa, nela entrevemos a inaptidão da existência de um homem arraigado à sua moral, ao seu senso de justiça, um tanto quanto distorcido, que se justificava por representar o bem comum. Os representantes do bem comum são seres ilusórios, pois somente buscam uma justificativa do seu ser no Outro para afirmar sua própria identidade frágil e fragmentada.

Qualquer semelhança entre Ozymandias e Thanos com certeza não é mera coincidência, ambos matam a sua moral em prol do seu compromisso ético, prol do o que eles consideram ser uma verdade mais elevada. Ao mesmo tempo que os heróis, egoisticamente portadores do bem comum, caem no abismo existencial e, assim como suas morais, são aniquilados. Lembrando que esses filmes são baseados em HQ’s (abreviação para histórias em quadrinhos), sendo Watchmen publicada em 1987 e Desafio Infinito, Guerra Infinita e Cruzada Infinita publicadas no começo dos anos 1990. E depois, adaptadas ao cinema no século XXI, apresentam similaridades que se associam e dissociam. Portanto, essas obras compartilham certas representações que podemos cruzar para tirar um fundo comum, algo que podemos chamar de um pensamento de época, uma das possíveis verdades históricas do fim do século XX e início do XXI.

O ser que subleva e ignora a moral é portador de uma profunda agonia, apesar de ser o vencedor, se sente solitário e em constante sofrimento. Enquanto os moralistas são inaptos à viver nesse mundo, pois não se adéquam e são jogados para escanteio pela impiedosa marcha do mundo moderno. Thanos e Roschach, Ozymandias e Capitão América, são apenas tipos ideais para repensarmos nosso posicionamento no mundo. Edgar Morin 3 já nos propôs essa reflexão, na qual os ícones da cultura pop ocupam o lugar dos deuses, e suas narrativas apresentam estruturas na qual podemos entrever certas visões e dimensões de mundo. Assim, termino esse texto em clima sombrio, pois no fundo, essas duas obras apresentam criticas ríspidas ao movimento da modernidade, do próprio funcionamento do capitalismo e das subjetividades dos seus atores, ou seja, um retrato da psicologia moderna através de espectros ideais, um arraigado à moral o outro desprendido dela. 

1Nas histórias em quadrinhos, escrita por Jim Starling e desenhada por George Pérez, a trama da trilogia Infinita é, perdão pelo trocadilho, infinitamente mais complexa. O que não desmerece o filme, dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, em nenhum aspecto, pois uma dura lição que aprendi na minha vida é que os filmes e series não se propõem à serem cópias, mas sim ADAPTAÇÕES.
2Considerado um marco na história das HQ’s, Watchmen, escrito por Alan Moore e desenhado por Dave Gibbons, fugiu dos clichês e do modelo convencional e introduziu técnicas artísticas e narrativas mais complexas. O filme, dirigido por Zach Schneider, é bem fiel à trama da HQ.
3MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

sexta-feira, 30 de março de 2018

[Crônica] Cristo


Por qual nome você chama Jesus Cristo? Conheço alguns, todos eles se referem à essa força mística e misteriosa. Já ouvi Oxalá, Jah, Krishna, Sidarta Gautama, Mitra, Hércules, Luke Skywalker, sem falar muitos outros que agora não me recordo. Todos essas entidades foram heróis, forças descomunais, enviados à Terra para ensinar caminhos de vida para os seres humanos. 

Talvez eles existiram de verdade, talvez tenham sido mitos, mas qual é a diferença? Num mundo de verdades plurais, a distância entre verdade e mito são anuláveis. Cada um segue o caminho que mais lhe tocar. 

Assim, creio que o melhor é aprender com essas entidades, ou mitos, todos eles ensinam filosofias e estilos de vida válidos até hoje. A raça humana, enquanto espécie, acumulou muitos saberes ao longo do tempo, e a forma privilegiada para transmitir essas ideias foram as narrativas, as histórias, os mitos. Então, nós que aqui estamos não podemos ser arrogantes ao ponto de negar toda a sabedoria e conhecimento advindos do o que foi e já não mais é. Por mais que reinterpretemos essas histórias no hoje, conseguiremos sempre extrair riquezas filosóficas e espirituais. 

Não consigo negar esses mistérios, basta atentarmos para atmosfera do dia, conseguimos sentir a melancolia no ar, a morte de Jesus Cristo nos toca. Independente da minha criação pseudocristã, há nuances que penetram em nossa sensibilidade e criam esse sentimento de amplitude e meditação. Estamos vivendo um ritual, uma suspensão e recriação do tempo. 

Infelizmente não sei a fonte da imagem, quem souber me avise.
Particularmente acredito em Jesus Cristo como um professor, um irmão humano que esteve aberto ao mistério da natureza e conseguiu realizar conexões entre o material e o sensível. Foi o maior professor para todos aqueles que se predispõem a sentir, passou lições de ética e magia, formas de se sentir bem consigo mesmo e com o mundo. Em todas as suas formas, e em todos os seus nomes, suas lições transmitem paz e harmonia, se seguidas com respeito e nunca com soberba. 

Pensemos na história de Jesus, considerando-o um herói no sentido que Joseph Campell emprega1. Ele nasceu de uma força sobrenatural, sem a concepção de um pai material, mas com uma mãe. Cresceu munido de sabedoria e curiosidade, um instinto inato de aventura e descoberta. Batalhou por seus ideais, juntou companheiros e disseminou sua sabedoria entre aqueles dispostos à ouvi-lo. Contou com o auxilio divino e foi provado pelo mal, pois deveria aprender a lidar consigo mesmo e com seus próprios desejos. Foi traído e morreu na cruz, levando consigo todos os pecados da humanidade, sacrificou-se em prol do seu amor. Ressuscitou ao terceiro dia, trazendo novas esperanças e sabedorias. 

Talvez não devamos tomar toda essa narrativa literalmente, até mesmo um respeitável teólogo2 afirma que devemos tomar a Bíblia como um conjunto de símbolos. Retomando o ponto sobre a pluralidade das verdades, creio que interpretar essas histórias como mitos carregados de significados seja mais produtivo do que podar seu potencial criativo colocando-as na caixa da verdade absoluta. 

Assim, hoje, dia que relembramos solenemente a morte carnal de Cristo3, precisamos também lembrar que sua trajetória deve ser um exemplo de vida. Esse ritual é cíclico e acontece todo ano, pois devemos ressignificar o tempo com mudanças. Sempre morreremos, sentiremos desgosto, seremos traídos e o sofrimento baterá à nossa porta. Mas toda vez que tivermos uma luz dentro de nós, uma força misteriosa que nos impulsiona, poderemos seguir em frente. Através de seu mito, Cristo nos ensina à enfrentar as dificuldades de nossa vida.

Nessa eterna batalha contra a vida e a morte, só podemos vencer com as armas do simbólico. 

1Ver CAMPBELL, J. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
3Atualmente, a escolha da data é feita baseada na primeira lua cheia após o equinócio da primavera (no Hemisfério Norte) e do outono (no Hemisfério Sul). Neste caso, a Sexta-feira Santa pode ocorrer entre os dias 22 de março e 25 de abril.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

[Crônica] Brasil Cyberpunk


No começo do ano passado eu escrevi um pequeno conto chamado “Ornitoborgue”. Tratava-se da história de um ornitorrinco que foi sequestrado por um cientista maluco e submetido à milhares de experiências. Nesse inteirim, ele enlouqueceu, perdeu sua idenditade, foi mutilado e o maligno doutor acoplou milhares de adereços no seu corpo. Com o tempo, ele deixou de se reconhecer como um ornitorrinco, mas passou a se entender como um igual do doutor maligno. Contudo, o doutor só estava se aproveitando do pobre Ornitoborgue. 
 
Quem me inspirou nesse texto foi o grande intelectual Francisco de Oliveira, em seu ensaio “O Ornitorrinco”, ele compara o Brasil ao mamífero bicudo para afirmar que o nosso país tropical reside entre a modernidade e o subdesenvolvimento. Possuímos aquilo que o modernidade prometeu, em termos de tecnologia e bens de consumo, mas ainda estamos presos na roda do capitalismo, aonde o chamado “terceiro mundo”, está na base, aonde a verdadeira desigualdade impera, e aonde o grande capital internacional lucra mais. 
 
Outro grande intelectual que me inspirou, foi o argentino Néstor Garcia Canclini. Em seu livro, “Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade”, pude, pela primeira vez, olhar com bons olhos o processo de mistura e recriação que os latino-americanos fazem das referências internacionais. Utilizando os óculos de suas tradições e práticas locais, nós, do “terceiro mundo”, resignificamos todas as referências advindas do exterior, predominantemente da cultura estadunidense. Assim, me senti aliviado, pois não somos meramente condicionados, nós criamos e recriamos muito com o que recebemos.

Tendo isso como base, gostaria de mostrar que o Brasil vive uma realidade cyberpunk. Sim, isso mesmo, estou me valendo de um termo internacional para explicar minha realidade local, pois consigo fazer vários cruzamentos e conexões a partir desse conceito, e bem, tenham certeza, o mundo já não gira mais em torno do Estado-nação, pelo menos não no ambito cotidiano. As políticas estatais ainda se delimitam, em parte, pelo Estado-nação, mas as relações internacionais tomaram conta, as fronteiras são tão porosas que na menor olhada ao nosso redor encontraremos algum produto, ou ideia, advinda do estrangeiro. Pra mim, quem é nacionalista nos nossos tempo multiculturais, é um conservador tão retrógrado que não consegue ver as possibilidades que a vida cosmopolítica abre para nós.


Pois bem, retornando ao porque do cyberpunk. O termo surgiu a partir das obras de ficção cientifica que mesclavam alta tecnologia com situações de vida medíocres, ou desumanas. A partir dos anos 1970 o termo foi cada vez mais difundido e fundou um subgênero literário muito forte, creio que seus dois principais expoentes foram os autores William Gibson, conhecido pela trilogia do “Neuromancer”, e Philip K. Dick, conhecido pela sua obra, que recentemente retornou ao cinema, “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” (conhecido no cinema como Blade Runner). 
 
Gostaria de começar por esse ponto, a fusão entre alta tecnologia e pobreza, situação que os dois autores exploram muito bem em seus mundos cyberpunk. Vejam bem, não tenho dúvidas de que o capitalismo venceu, o mundo neoliberal está acontecendo aqui e agora, a vida moderna nos impõe isso. Assim, também creio que essa forçosa vontade de consumo já está tão consolidada no fundo da subjetividade humana que não há mais volta. Desde de bebês somos expostos à necessidade de comprar, de possuir bens, não há como negar isso. Temos uma grande vontade de ter bens que, aparentemente, são a vitrine da modernidade. E junto com esses bens, adquirimos um rótulo para nossa personalidade, uma sociabilidade imposta por aquele produto.

Assim, muitas vezes no meu cotidiano eu testemunho a coexistência entre fome e o ápice da tecnologia, falta de condições básicas de higiene e conexão com internet, problemas domésticos perpassados culturalmente e divulgação de fotos pelas redes sociais. Essa é a fusão entre realidade material e a realidade virtual, as distâncias foram anuladas, e o mundo virtual se materializa na vida cotidiana. A plenitude da artificialidade virtual aliada à um cotidiano inóspito, será que há alguma semelhança com Matrix (1999)? 
 
Não há nada mais contraditório do que o dia a dia. Andem por vosso bairro, ou por vossa cidade, se não quiserem andar, simplesmente vasculhem o perfil de vossos amigos nas redes sociais, e vocês testemunharam isso. Cyberpunk, ou não? É a coexistência entre alta técnologia e necessidade de consumo com falta de condições humanas básicas de sobrevivência. 
 
Além do mais, vejam vossas opções culturais. O que nós mais consumimos em termos de cultura? Com toda certeza ouvirei falar de músicas coreanas, jogos japoneses, séries estadunidenses, filmes britânicos. Essa mistura, esse cosmopolitismo já foi previsto pelo William Gibson e pelo Philip K. Dick nos anos 1970. Vemos grandes corporações internacionais cada vez mais infiltradas no nosso dia-a-dia, Google, Microsoft, Apple, bancos internacionais com transações milhonárias. Tudo isso na nossa terra, no Brasilzão!
Outro fator, reparem em vossas roupas, reparem em vossos “estilos”, com certeza encontraram referências e cruzamentos estéticos nunca sonhados antes! Por exemplo, escrevo esse texto com uma camiseta do Megadeth, com uma bermuda surf verde, de chinelos, carrego um crucifixo no peito e um alargador na orelha direita. Pois bem, essa é a estética da modernidade, tenho o mundo todo ao toque da minha mão, no meu celular, no meu notebook, nas minhas roupas. 
 
Me delimitarei ao Brasil, mas em todo o “terceiro mundo”, leia-se América Latina, África, maior parte da Ásia, vive a mesma situação. No caso do nosso país, tudo se explica quando analisamos o projeto de Estado proposto pela ditadura militar, eles realmente atingiram seu objetivo: acelararam a modernização brasileira por uma via repressiva e arreganharam as portas brasileiras para o capital estrangeiro. Ora, não há como negar, eles atingiram o objetivo proposto. Discordo do caminho truculento que eles tomaram, mas eles fizeram isso para inserir o Brasil na roda do capitalismo global. E assim, inauguraram a modernidade consumista no Brasil. 
 
Nesse primeiro texto quis mostrar mais esses aspectos nítidos que caracterizam o porque considero o adjetivo cyberpunk perfeito para classificar a situação atual do Brasil. Aqui não importa moralizar o debate e afirmar se isso é bom ou ruim, só quis apontar essa chave de leitura. Na segunda parte, pretendo mostrar como se desvelou nosso sentimento de mundo, nossa subjetividade, frente aos bombardeios culturais que o Brasil cyberpunk sofreu.