Hoje
fui ao cinema assistir o novo filme dos Vingadores da Marvel,
e ontem reassisti um clássico moderno da DC, Watchmen (2009).
Creio que atinge o ápice da síntese e da antítese, pois ambos os
filmes tratam, simbolicamente, das mesmas questões, o segundo com
mais maestria do que o primeiro, o que, no entanto, não anula a sua
eficácia de transmitir uma mensagem direta e clara: a falência dos
discursos moralizantes. Pois bem, raramente me arrisco à desferir
juízos sobre o cinema, prefiro me aventurar nas incursões
filosóficas do cotidiano e na ficção fantástica. Porém, algo me
chama, me impele à escrever esse texto, uma força da qual preciso
ser porta-voz. Para quem for contra os infames spoilers, por
favor pare de ler aqui.
Em
verdade vos digo, o Vingadores: Guerra Infinita1
é um clássico filme da Marvel – isto é, você verá ótimas
lutas, efeitos especiais exuberantes, tiradas cômicas não tão
engraçadas e uma fotografia bem colorida – com exceção de que,
ao menos dessa vez, você não saíra sorridente do cinema. No que o
filme peca em não representar relações humanas com profundidade,
em exageradas tiradas cômicas, em buracos roteirísticos e
“forçações de amizade” cênicas, ele acerta na construção do
personagem Thanos. Tanto que uma cena digna de ser notada é o
momento em que Gamora recorda do seu primeiro contato com Thanos,
momento em que ele lhe explica sua filosofia de vida, sua busca por
equilíbrio.
Admito
que parte do o que me intriga no Thanos provém do meu profundo senso
antimoralismo heroístico. Mas, se olharmos bem, num mundo em que
existem heróis com um senso moral irritante, entidades que realmente
se sentem representantes do bem comum e de valores burgueses e
liberais vigentes desde o Iluminismo e perpetuados a partir da queda
da Bastilha em 1789, um ser como Thanos realmente representa uma
ameaça. Simbolicamente ele retrata a morte da moral, àquela
clássica que valoriza a vida e elege representantes e heróis que
perpetuam conjuntos de valores anacrônicos. Thanos emerge como o
superhomem que Nietzsche previu. O homem que se elevou além
da moral, além dos valores de seu tempo, negou suas travas
históricas e avançou, enfrentando à tudo e todos, renegando seus
sentimentos em prol do seu objetivo. Do seu ponto de vista, ele lutou
por uma verdade mais elevada.
O
superhomem venceu os heróis, venceu os símbolos da moral
antiga, liberal e burguesa, com o poder das Joias do Infinito, isto
é, metáfora para explicar que nesse momento histórico, no atual pé
do século XXI, percebemos que os vitoriosos são os homens sem
moral, àqueles que se elevaram além dos inquestionáveis valores
compartilhados, pois as engrenagens históricas giram ao seu favor.
Nesse momento histórico, a moral compartilhada, com ilusões do bem
comum, tende a desaparecer perante a tormenta do individualismo
inescrupuloso, da ética da conquista.
Porém,
em sua luta, Thanos só acumulou perdas, dores e agonia. Um profundo
sofrimento marca esse homem sem escrúpulos que visa apenas o seu
ideal.
Em
Watchmen (2009) 2,
filme de nove anos atrás da DC, já retrava essa mesma questão. No
universo do filme, os heróis são seres humanos comuns, com
profundas complexidades psicológicas. Entidades humanas e
conflituosas, de carne e osso, longe dos deuses intocáveis (como
dois alvos paradigmáticos do meu ódio antimoralista heroístico
como Superman e Capitão América), os heróis são maculados pela
perversidade, atravessados pela tensão emocional, pelos traumas e
pela consciência. Geralmente tanto os filmes como as HQ’s da DC
prezam mais pela complexidade psicológica de seus personagens, a
atmosfera é sombria, com narrações atormentadas e tramas
intrincadas – assim como a paleta da câmera dos filmes da DC, o
humor do espectador fica sombria e com vários tons de cinza após
uma sessão de seus filmes.
Apesar
do quadro descrito acima, no mundo de Watchmen, os heróis se
pretendem representantes do bem comum, essa perspectiva é encarnada
pelo personagem Rorschach, detentor de senso moral distorcido,
marcado por traumas, ele realmente acredita ser o representante da
justiça sem dó, que não se martiriza por utilizar métodos
violentos. No caso de Watchmen, me intrigo com esse
personagem, o portador da moral distorcida. No final Rorschach é
abatido por não compactuar com o assassinato da moral promovido por
Ozymandias, seu antigo herói que mata milhões para acabar com a
Guerra Fria. A morte de Rorschach é significativa, nela entrevemos a
inaptidão da existência de um homem arraigado à sua moral, ao seu
senso de justiça, um tanto quanto distorcido, que se justificava por
representar o bem comum. Os representantes do bem comum são seres
ilusórios, pois somente buscam uma justificativa do seu ser no Outro
para afirmar sua própria identidade frágil e fragmentada.
Qualquer
semelhança entre Ozymandias e Thanos com certeza não é mera
coincidência, ambos matam a sua moral em prol do seu compromisso
ético, prol do o que eles consideram ser uma verdade mais elevada.
Ao mesmo tempo que os heróis, egoisticamente portadores do bem
comum, caem no abismo existencial e, assim como suas morais, são
aniquilados. Lembrando que esses filmes são baseados em HQ’s
(abreviação para histórias em quadrinhos), sendo Watchmen
publicada em 1987 e Desafio Infinito, Guerra Infinita e
Cruzada Infinita publicadas no começo dos anos 1990. E depois, adaptadas ao cinema no século XXI, apresentam similaridades que se associam e dissociam.
Portanto, essas obras compartilham certas representações que
podemos cruzar para tirar um fundo comum, algo que podemos chamar de
um pensamento de época, uma das possíveis verdades históricas do fim do século XX e início do XXI.
O
ser que subleva e ignora a moral é portador de uma profunda agonia,
apesar de ser o vencedor, se sente solitário e em constante
sofrimento. Enquanto os moralistas são inaptos à viver nesse mundo,
pois não se adéquam e são jogados para escanteio pela impiedosa
marcha do mundo moderno. Thanos e Roschach, Ozymandias e Capitão
América, são apenas tipos ideais para repensarmos nosso
posicionamento no mundo. Edgar Morin 3
já nos propôs essa reflexão, na qual os ícones da cultura pop
ocupam o lugar dos deuses, e suas narrativas apresentam estruturas na
qual podemos entrever certas visões e dimensões de mundo. Assim,
termino esse texto em clima sombrio, pois no fundo, essas duas obras
apresentam criticas ríspidas ao movimento da modernidade, do próprio
funcionamento do capitalismo e das subjetividades dos seus atores, ou
seja, um retrato da psicologia moderna através de espectros ideais,
um arraigado à moral o outro desprendido dela.
1Nas
histórias em quadrinhos, escrita por Jim Starling e desenhada por
George Pérez, a trama da trilogia Infinita é, perdão pelo
trocadilho, infinitamente mais complexa. O que não desmerece o
filme, dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, em nenhum
aspecto, pois uma dura lição que aprendi na minha vida é que os
filmes e series não se propõem à serem cópias, mas sim
ADAPTAÇÕES.
2Considerado
um marco na história das HQ’s, Watchmen, escrito
por Alan Moore e desenhado por Dave Gibbons, fugiu dos
clichês e do modelo convencional e introduziu técnicas artísticas
e narrativas mais complexas. O filme, dirigido por Zach Schneider, é
bem fiel à trama da HQ.
3MORIN,
Edgar. Cultura de Massas no Século XX: Neurose. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997.