No
começo do ano passado eu escrevi um pequeno conto chamado
“Ornitoborgue”. Tratava-se da história de um ornitorrinco que
foi sequestrado por um cientista maluco e submetido à milhares de
experiências. Nesse inteirim, ele enlouqueceu, perdeu sua
idenditade, foi mutilado e o maligno doutor
acoplou milhares
de adereços no
seu corpo. Com o tempo, ele deixou de se
reconhecer como um ornitorrinco, mas passou a se entender como um
igual do doutor maligno. Contudo, o doutor só estava se aproveitando
do pobre Ornitoborgue.
Quem
me inspirou nesse texto foi o grande intelectual Francisco de
Oliveira, em seu ensaio “O Ornitorrinco”, ele compara o Brasil ao
mamífero bicudo para afirmar que o nosso país tropical reside entre
a modernidade e o subdesenvolvimento. Possuímos aquilo que o
modernidade prometeu, em termos de tecnologia e bens de consumo, mas
ainda estamos presos na roda do capitalismo, aonde o chamado
“terceiro mundo”, está na base, aonde a verdadeira desigualdade
impera, e aonde o grande capital internacional lucra mais.
Outro
grande intelectual que me inspirou, foi o argentino Néstor Garcia
Canclini. Em seu livro, “Culturas Híbridas: estratégias para
entrar e sair da modernidade”, pude, pela primeira vez, olhar com
bons olhos o processo de mistura e recriação que os
latino-americanos fazem das referências internacionais. Utilizando
os óculos de suas tradições e práticas locais, nós, do “terceiro
mundo”, resignificamos todas as referências advindas do exterior,
predominantemente da cultura estadunidense. Assim, me senti aliviado,
pois não somos meramente condicionados, nós criamos e recriamos
muito com o que recebemos.
Tendo
isso como base, gostaria de mostrar que o Brasil vive uma realidade
cyberpunk. Sim, isso mesmo, estou me valendo de um termo
internacional para explicar minha realidade local, pois consigo fazer
vários cruzamentos e conexões a partir desse conceito, e bem,
tenham certeza, o mundo já não gira mais em torno do Estado-nação,
pelo menos não no ambito cotidiano. As políticas estatais ainda se
delimitam, em parte, pelo Estado-nação, mas as relações
internacionais tomaram conta, as fronteiras são tão porosas que na
menor olhada ao nosso redor encontraremos algum produto, ou ideia,
advinda do estrangeiro. Pra mim, quem é nacionalista nos nossos
tempo multiculturais, é um conservador tão retrógrado que não
consegue ver as possibilidades que a vida cosmopolítica abre para
nós.
Pois
bem, retornando ao porque do cyberpunk. O
termo surgiu a partir das obras de ficção cientifica que mesclavam
alta tecnologia com situações de vida medíocres, ou desumanas. A
partir dos anos 1970 o termo foi cada vez mais difundido e fundou um
subgênero literário muito forte, creio que seus dois principais
expoentes foram os autores William Gibson, conhecido pela trilogia do
“Neuromancer”, e Philip K. Dick, conhecido pela sua obra, que
recentemente retornou ao cinema, “Androides Sonham com Ovelhas
Elétricas?” (conhecido no cinema como Blade
Runner).
Gostaria
de começar por esse ponto, a fusão entre alta tecnologia e pobreza,
situação que os dois autores exploram muito bem em seus mundos
cyberpunk. Vejam bem, não tenho dúvidas de que o capitalismo
venceu, o mundo neoliberal está acontecendo aqui e agora, a vida
moderna nos impõe isso. Assim, também creio que essa forçosa
vontade de consumo já está tão consolidada no fundo da
subjetividade humana que não há mais volta. Desde de bebês somos
expostos à necessidade de comprar, de possuir bens, não há como
negar isso. Temos uma grande vontade de ter bens que, aparentemente,
são a vitrine da modernidade. E junto com esses bens, adquirimos um
rótulo para nossa personalidade, uma sociabilidade imposta por
aquele produto.
Assim,
muitas vezes no meu cotidiano eu testemunho a coexistência entre
fome e o ápice da tecnologia, falta de condições básicas de
higiene e conexão com internet, problemas domésticos perpassados
culturalmente e divulgação de fotos pelas redes sociais. Essa é a
fusão entre realidade material e a realidade virtual, as distâncias
foram anuladas, e o mundo virtual se materializa na vida cotidiana. A
plenitude da artificialidade virtual aliada à um cotidiano inóspito,
será que há alguma semelhança com Matrix (1999)?
Não
há nada mais contraditório do que o dia a dia. Andem por vosso
bairro, ou por vossa cidade, se não quiserem andar, simplesmente
vasculhem o perfil de vossos amigos nas redes sociais, e vocês
testemunharam isso. Cyberpunk, ou não? É a coexistência entre alta
técnologia e necessidade de consumo com falta de condições humanas
básicas de sobrevivência.
Além
do mais, vejam vossas opções culturais. O que nós mais consumimos
em termos de cultura? Com toda certeza ouvirei
falar de músicas coreanas, jogos japoneses, séries estadunidenses,
filmes britânicos. Essa mistura, esse cosmopolitismo já foi
previsto pelo William Gibson e pelo Philip K. Dick nos anos 1970.
Vemos grandes corporações internacionais cada vez mais infiltradas
no nosso dia-a-dia, Google, Microsoft, Apple, bancos internacionais
com transações milhonárias. Tudo isso na nossa terra, no
Brasilzão!
Outro
fator, reparem em vossas roupas, reparem em vossos “estilos”, com
certeza encontraram referências e cruzamentos estéticos nunca
sonhados antes! Por exemplo, escrevo esse texto com uma camiseta do
Megadeth, com uma bermuda surf verde, de chinelos, carrego um
crucifixo no peito e um alargador na orelha direita. Pois bem, essa é
a estética da modernidade, tenho o mundo todo ao toque da minha mão,
no meu celular, no meu notebook, nas minhas roupas.
Me
delimitarei ao Brasil, mas em todo o “terceiro mundo”, leia-se
América Latina, África, maior parte da Ásia, vive a mesma
situação. No caso do nosso país, tudo se explica quando analisamos
o projeto de Estado proposto pela ditadura militar, eles realmente
atingiram seu objetivo: acelararam a modernização brasileira por
uma via repressiva e arreganharam as portas
brasileiras para o capital estrangeiro. Ora, não há como negar,
eles atingiram o objetivo proposto. Discordo do caminho truculento
que eles tomaram, mas eles fizeram isso para inserir o Brasil na roda
do capitalismo global. E assim, inauguraram
a modernidade consumista no Brasil.
Nesse
primeiro texto quis mostrar mais esses aspectos nítidos que
caracterizam o porque considero o adjetivo cyberpunk perfeito para
classificar a situação atual do Brasil. Aqui não importa moralizar
o debate e afirmar se isso é bom ou ruim, só quis apontar essa
chave de leitura. Na segunda parte, pretendo mostrar como se desvelou
nosso sentimento de mundo, nossa subjetividade, frente aos
bombardeios culturais que o Brasil cyberpunk sofreu.