quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

[Crônica] Brasil Cyberpunk


No começo do ano passado eu escrevi um pequeno conto chamado “Ornitoborgue”. Tratava-se da história de um ornitorrinco que foi sequestrado por um cientista maluco e submetido à milhares de experiências. Nesse inteirim, ele enlouqueceu, perdeu sua idenditade, foi mutilado e o maligno doutor acoplou milhares de adereços no seu corpo. Com o tempo, ele deixou de se reconhecer como um ornitorrinco, mas passou a se entender como um igual do doutor maligno. Contudo, o doutor só estava se aproveitando do pobre Ornitoborgue. 
 
Quem me inspirou nesse texto foi o grande intelectual Francisco de Oliveira, em seu ensaio “O Ornitorrinco”, ele compara o Brasil ao mamífero bicudo para afirmar que o nosso país tropical reside entre a modernidade e o subdesenvolvimento. Possuímos aquilo que o modernidade prometeu, em termos de tecnologia e bens de consumo, mas ainda estamos presos na roda do capitalismo, aonde o chamado “terceiro mundo”, está na base, aonde a verdadeira desigualdade impera, e aonde o grande capital internacional lucra mais. 
 
Outro grande intelectual que me inspirou, foi o argentino Néstor Garcia Canclini. Em seu livro, “Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade”, pude, pela primeira vez, olhar com bons olhos o processo de mistura e recriação que os latino-americanos fazem das referências internacionais. Utilizando os óculos de suas tradições e práticas locais, nós, do “terceiro mundo”, resignificamos todas as referências advindas do exterior, predominantemente da cultura estadunidense. Assim, me senti aliviado, pois não somos meramente condicionados, nós criamos e recriamos muito com o que recebemos.

Tendo isso como base, gostaria de mostrar que o Brasil vive uma realidade cyberpunk. Sim, isso mesmo, estou me valendo de um termo internacional para explicar minha realidade local, pois consigo fazer vários cruzamentos e conexões a partir desse conceito, e bem, tenham certeza, o mundo já não gira mais em torno do Estado-nação, pelo menos não no ambito cotidiano. As políticas estatais ainda se delimitam, em parte, pelo Estado-nação, mas as relações internacionais tomaram conta, as fronteiras são tão porosas que na menor olhada ao nosso redor encontraremos algum produto, ou ideia, advinda do estrangeiro. Pra mim, quem é nacionalista nos nossos tempo multiculturais, é um conservador tão retrógrado que não consegue ver as possibilidades que a vida cosmopolítica abre para nós.


Pois bem, retornando ao porque do cyberpunk. O termo surgiu a partir das obras de ficção cientifica que mesclavam alta tecnologia com situações de vida medíocres, ou desumanas. A partir dos anos 1970 o termo foi cada vez mais difundido e fundou um subgênero literário muito forte, creio que seus dois principais expoentes foram os autores William Gibson, conhecido pela trilogia do “Neuromancer”, e Philip K. Dick, conhecido pela sua obra, que recentemente retornou ao cinema, “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” (conhecido no cinema como Blade Runner). 
 
Gostaria de começar por esse ponto, a fusão entre alta tecnologia e pobreza, situação que os dois autores exploram muito bem em seus mundos cyberpunk. Vejam bem, não tenho dúvidas de que o capitalismo venceu, o mundo neoliberal está acontecendo aqui e agora, a vida moderna nos impõe isso. Assim, também creio que essa forçosa vontade de consumo já está tão consolidada no fundo da subjetividade humana que não há mais volta. Desde de bebês somos expostos à necessidade de comprar, de possuir bens, não há como negar isso. Temos uma grande vontade de ter bens que, aparentemente, são a vitrine da modernidade. E junto com esses bens, adquirimos um rótulo para nossa personalidade, uma sociabilidade imposta por aquele produto.

Assim, muitas vezes no meu cotidiano eu testemunho a coexistência entre fome e o ápice da tecnologia, falta de condições básicas de higiene e conexão com internet, problemas domésticos perpassados culturalmente e divulgação de fotos pelas redes sociais. Essa é a fusão entre realidade material e a realidade virtual, as distâncias foram anuladas, e o mundo virtual se materializa na vida cotidiana. A plenitude da artificialidade virtual aliada à um cotidiano inóspito, será que há alguma semelhança com Matrix (1999)? 
 
Não há nada mais contraditório do que o dia a dia. Andem por vosso bairro, ou por vossa cidade, se não quiserem andar, simplesmente vasculhem o perfil de vossos amigos nas redes sociais, e vocês testemunharam isso. Cyberpunk, ou não? É a coexistência entre alta técnologia e necessidade de consumo com falta de condições humanas básicas de sobrevivência. 
 
Além do mais, vejam vossas opções culturais. O que nós mais consumimos em termos de cultura? Com toda certeza ouvirei falar de músicas coreanas, jogos japoneses, séries estadunidenses, filmes britânicos. Essa mistura, esse cosmopolitismo já foi previsto pelo William Gibson e pelo Philip K. Dick nos anos 1970. Vemos grandes corporações internacionais cada vez mais infiltradas no nosso dia-a-dia, Google, Microsoft, Apple, bancos internacionais com transações milhonárias. Tudo isso na nossa terra, no Brasilzão!
Outro fator, reparem em vossas roupas, reparem em vossos “estilos”, com certeza encontraram referências e cruzamentos estéticos nunca sonhados antes! Por exemplo, escrevo esse texto com uma camiseta do Megadeth, com uma bermuda surf verde, de chinelos, carrego um crucifixo no peito e um alargador na orelha direita. Pois bem, essa é a estética da modernidade, tenho o mundo todo ao toque da minha mão, no meu celular, no meu notebook, nas minhas roupas. 
 
Me delimitarei ao Brasil, mas em todo o “terceiro mundo”, leia-se América Latina, África, maior parte da Ásia, vive a mesma situação. No caso do nosso país, tudo se explica quando analisamos o projeto de Estado proposto pela ditadura militar, eles realmente atingiram seu objetivo: acelararam a modernização brasileira por uma via repressiva e arreganharam as portas brasileiras para o capital estrangeiro. Ora, não há como negar, eles atingiram o objetivo proposto. Discordo do caminho truculento que eles tomaram, mas eles fizeram isso para inserir o Brasil na roda do capitalismo global. E assim, inauguraram a modernidade consumista no Brasil. 
 
Nesse primeiro texto quis mostrar mais esses aspectos nítidos que caracterizam o porque considero o adjetivo cyberpunk perfeito para classificar a situação atual do Brasil. Aqui não importa moralizar o debate e afirmar se isso é bom ou ruim, só quis apontar essa chave de leitura. Na segunda parte, pretendo mostrar como se desvelou nosso sentimento de mundo, nossa subjetividade, frente aos bombardeios culturais que o Brasil cyberpunk sofreu.