terça-feira, 26 de dezembro de 2017

[Conto] Relatos de uma busca - 1


Um dia muito quente, realmente quente. Eu consigo ver uma névoa pairando acima das águas, o sol não perdoa nada sob o seu brilho. Já não sei mais que dia é hoje, fazem anos que iniciei minha viagem pelas vastidões desse país. Até agora juntei diversos relatos, mas escrevo para o nada, ou para a eternidade, pois não deixarei ninguém ler essas palavras. Me acusariam de louco. Ninguém imagina quão o absurdo e o mítico são reais. 

Os motivos que me impulsionaram a começar esta jornada me são turvos. Depois de todo esse tempo, e de tantos absurdos, minha memória começou a falhar. Por isso é melhor escrever, não posso deixar minhas memórias morrerem, tenho uma promessa a cumprir, tenho um caminho para encontrar. 

Por hora estou no meio de uma floresta, beiro um extenso rio que exala vida. Tudo aqui é vivo e pesado. O ar aqui é denso e não há como evitar o calor. Diversos insetos voam em minha direção, as vezes nem percebo quando eles grudam em minha pele. Graças a minha maldição sou imune à doenças, então nem me preocupo com esses bichos. Carrego poucas coisas, apenas uma mochila com algumas mudas de roupa, dois livros que me guiam, mapas, este caderno no qual escrevo e uma pena. Descobri como fazer tinta utilizando algumas frutas coloridas, não faço ideia do nome delas. Meu instinto de sobrevivência apita o tempo todo, por algum motivo instintivo compreendo as razões de ser desse ambiente, e a cada minuto aprendo novos meios de sobreviver nessa terra. 

Johann Moritz Rugendas - Paisagem na Selva Tropical Brasileira (1830)
 
Se não me engano, comecei a andar por essa floresta, beirando esse rio, depois que um velho me contou a história de uma sereia que vive nas profundezas dessas águas. Segundo ele, outro amaldiçoado, como eu, havia procurado essa sereia, e ela havia lhe dado uma pista, um caminho. Qualquer resquício de verdade me é o suficiente, não sei para onde ir, então qualquer pista é valiosa, qualquer chance é ouro. 

Não posso negar que essas águas tem poder, sinto uma vibração densa emergindo de suas ondas pacificas. Os nativos que encontrei possuem um profundo respeito por essas águas. Ela é o sinônimo de vida, ou seja, também é a morte. Eu não gostaria de conhecer a fúria dessas águas escuras, uma voz me sussurra “cuidado”. Estou sendo cauteloso, espero não desrespeitar a entidade que aqui habita, apenas quero sua ajuda. 
 
O sobrenatural não está me assustando mais, vejo espíritos e elementais caminhando por todos os cantos. Acho que mudei muito nesse tempo de viagem, antes de sair eu tinha tanto medo dessas manifestações, nunca lidei bem com minha capacidade de sentir o mundo místico. Os espíritos da floresta estão muito assustados, sei que não é a minha presença que lhes incomoda, mas algo sutil, algo que não consigo perceber, devo ficar atento. Esses dias vi uma grande cobra voando em direção à lua, alguns espíritos montavam suas costas, e todas as entidades que habitavam a floresta prestaram seu respeito. Ainda não descobri o que foi aquilo, a próxima vez que um espírito se comunicar comigo vou lhe perguntar o que foi aquela manifestação. Por algum motivo a morte não me assusta mais, ela está tão perto que as vezes sinto sua respiração. Minhas únicas armas para evitá-la são meus conhecimentos e meu instinto. 
 
Contudo, não posso me afastar do meu objetivo, preciso encontrar aquela sereia. Quero voltar a dormir, a minha maldição não me permite fechar os olhos, sinto o cansaço de todos esses anos pesando em meus ombros, quero um pequeno descanso. Essa sereia me ajudará, conseguirei alguma dica valiosa com ela, não posso perder a esperança.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

[Conto?] Estrela Vermelha


Minha terra… Uma bela terra, mas a morte sussurra no ouvido de todos. O medo se espalha com o vento. O silêncio não se deixa intimidar pelas festas, a música não perturba a vastidão do indizível. O que eu mais amei foi o calor, o vento quente do verão batendo em meu peito sempre aliviou meus sentimentos. Só os vinhos e as comidas de lá me saciavam. Eu nunca gostei das comidas chiques, mas sim do arroz feito numa panela de barro, dos peixes assados na fogueira, dos frutos do mar frescos e bem servidos, das belas frutas suculentas e doces. Espanha, essa é a minha terra, y yo amo tudo lo que esta tierra crea.

Nasci nas docas da Galícia, mas os meus pais sempre foram nômades, nunca tive uma casa, sempre vivi nas carroças, seguindo os ventos da vida. Meu pai era músico, ganhávamos nosso sustento graças à suas apresentações. Minha mãe dançava enquanto ele tocava, e ela era linda, seu lindo vestido vermelho rodopiava enquanto seus olhos verdes encaravam o meu pai. Eles realmente se amavam, e eu fui uma criança muito querida. Entretanto, eu não ficava parado enquanto eles se apresentavam, desde cedo o meu pai me ensinou os truques do furto. Sou versado nessa arte. Nenhuma moeda passava por mim, toda a plateia era saqueada. Desde cedo eu tracei o meu futuro, sabia que seria um grande ladrão, um grande homem com muita riqueza e eu tinha um sonho. Um rio de ouro! Eu queria construir um rio de ouro, e sabia que conseguiria, graças aos dotes passados pelo meu pai. 
 
Minha vida deu uma reviravolta quando fiz 12 anos. Em um vilarejo, me pegaram enquanto realizava meus trabalhos. Toda minha família foi acusada, e a população se enfureceu. Naquele dia eu assinei meu atestado de covarde, meus pais sacrificaram suas vidas para que eu pudesse fugir, e minha maior dor é que eu não fiz nada para salvá-los. Vi o meu pai ser degolado enquanto estupravam minha mãe, e eu só pude chorar, me esconder e correr. 
 
Fugi, corri por muito tempo até não ver mais o vilarejo. Toda a minha vida estava perdida, eu estava perdido e os meus pais mortos. Porém, nunca me senti sozinho, os ensinamentos dos meus pais me acompanharam pelo resto de minha vida. Eu sabia caçar, conseguia me apresentar em alguns vilarejos e além disso, minha especialidade se aperfeiçoou, desde aquele triste dia minhas mãos eram envoltas por fantasmas, eu conseguia roubar tudo o que quisesse. Esqueci meu nome de batismo e adotei uma alcunha que me acompanhou até o tumulo (e depois dele também), Estrela Vermelha. 


Por mais estranho que pareça, eu, um ladrão e mentiroso, nunca perdi minha fé em Jesus Cristo, sempre andei com um grande crucifixo dourado. Mesmo depois de todas as tragédias de minha vida, eu sempre rezei, sempre conversei com Deus. Nunca pedi perdão, pois eu que escolhi o meu caminho, eu que escolhi viver no submundo. 
 
Com 16 anos eu conheci um homem que chamei de amigo por muitos anos, ele me convidou para ser sua dupla, e eu aceitei sem nem pestanejar. A solidão tinha começado a me incomodar, eu queria ter alguém para confiar. Nós começamos a ser conhecidos por toda a Espanha, o grupo do Estrela Vermelha, éramos ladrões reconhecidos, e conforme nossa fama crescia, mais e mais seguidores adentravam em nosso grupo. Éramos 30 homens, dos mais formidáveis, pistoleiros e espadachins, ladrões e trapaceiros, ninguém batia de frente conosco, éramos temidos e respeitados. Por 10 anos eu vivi o paraíso, nada abalava o grupo do Estrela Vermelha, eu era o líder, junto com o meu amigo, que sempre me aconselhou e foi quem eu mais respeitei.

Por 10 anos conheci todos os tipos de mulheres, bebi todos os tipos de vinho, fumei todos os tipos de fumo. Aquela foi minha época de ouro, o meu sonho de ter um rio de ouro estava prestes a se concretizar. Porém, algo me chamava, uma voz sempre insistia para que eu desse metade dos meus lucros para os pobres, e eu sempre fiz isso, nunca reneguei essa voz, na época eu pensava que era Jesus Cristo, e eu respeitava, sem nem pestanejar. Alguns dos meus companheiros não aprovavam essa atitude, mas nenhum deles tinha a ousadia de bater de frente comigo, eu era temido, tanto na lamina quanto na bala. Eu não me importava mais em matar os meus oponentes, tirei a vida de muitos homens que cruzaram o meu caminho. Eu sabia que os meus atos não eram em vão.
 
Então chegou a guerra, uma guerra desnecessária. Todos sabíamos que o rei iria cair logo, ninguém confiava nele, mas não esperávamos que seria daquela forma. Confesso que sempre fui seduzido pelo pensamento dos comunistas, achava lindo a ideia de compartilhar toda riqueza, todos poderiam ser ricos! Afinal, desde que fundei o grupo do Estrela Vermelha, eu nunca roubei dos pobres por um único motivo: toda a riqueza estava nas mãos de uns poucos, e esses poucos não sabiam gastar o seu ouro. Isso estava na cara de todos, o mundo era desigual, ninguém olhava pelos pobres. Durante a guerra eu me aliei aos comunistas, o grupo do Estrela Vermelha aderiu à resistência e lutamos bravamente contra os soldados daquele desprezível general Franco. 
 
O meu amigo, o meu braço direito, a pessoa que eu mais confiava me traiu. Ele nunca apoiou a união do grupo com os comunistas, ele não aceitava as ideias, e não simpatizava com o movimento de resistência. Ele nos traiu, seguindo suas mentiras fomos emboscados nas Astúrias e, junto com meus 28 homens, desencarnei ao som de tiros. 
 
Me lembro de poucas coisas após o meu desencarne, paguei por todas as vidas que tirei e por todo ouro que roubei. Um dia uma luz me puxou da escuridão e disse “A nobreza da sua alma sempre foi notada, mesmo seguindo um caminho obscuro você sempre fez o bem, sempre atacou o fraco para proteger o forte. Eu quero sua força do meu lado, venha, temos muito o que fazer”. Aquela luz era tão linda, a dor se dissipou e eu lembrei o meu nome.

E essa é a história do meu encarne e desencarne. Uma vida cheia de amores, cheia de tragédias. Mas fui feliz, eu amei minha vida. E dela trago algo que nunca abandonarei, sempre lutarei contra as injustiças, nunca aceitarei o forte menosprezando o fraco, não deixarei uma criança com frio ou com fome. Yo soy el Estrela Roja, y sigo mi camino trabajando para el bien.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

[Crônica] Tratado anti-politicamente correto


Desde os anos 1960 estamos vendo a ascensão de diversos movimentos sociais, assim como a afirmação e resgates das identidades minoritárias. Interessante observar que esse processo se intensificou no momento em que o capitalismo instaurou, definitivamente, suas raízes no meio da cultura. São dois movimentos que não estão desassociados: afirmação identitária e consolidação do capitalismo global. 

Se me permitem fazer uma breve analise – desde já afirmo o meu lugar privilegiado de homem branco hétero e blablablá – creio que em nossa era, dita “pós-moderna”, o indivíduo está tão bem constituído que o que realmente conta não é a luta ideológica, ou emancipatória de seu grupo, mas sim a sua exclusiva afirmação identitária. Tanto que a grande parte dos discursos que vejo sobre racismo e feminismo (não generalizo, pois ainda vejo posicionamentos inspiradores) basicamente dizem “CAIA FORA DO MEU ESPAÇO E NÃO FALE NADA QUE EU NÃO QUEIRA OUVIR”. Claro que eu compreendo a história traumática desses grupos que sofreram inúmeras opressões ao longo da história, e longe de mim negar a eficácia emancipatória dos movimentos socioculturais, aliás afirmo categoricamente que eles devem existir, muitos direitos básicos foram conquistados graças aos seus esforços. Entretanto, acho que podemos conversar sobre essa preocupação exacerbada com o indivíduo.
 
No momento, todos os conflitos políticos são transportados diretamente para os conflitos culturais, e podemos confirmar que determinados grupos consomem certo número de artistas que eles consideram “desconstruídos” ou “críticos”. No final eles acabam reforçando um nicho do mercado e construindo sua identidade em cima de produtos culturais. Acho que em pleno século XXI não é mais novidade dizer que a cultura também é um mercado. Pois bem, Deleuze e Guatarri já haviam escrito nos anos 19802 que a tendência do capitalismo é englobar todos os fluxos descontínuos, ou seja, qualquer forma de fugir do capitalismo deveria estar sempre se vigiando para não ser consumida pelo mercado. Pois bem, o politicamente correto foi englobado pelo mercado, e digo mais, essa anexação das identidades minoritárias pelo mercado produziram um mecanismo sutil que transforma o “discurso emancipatório” em “discurso da distância”. Tal distância opera da seguinte forma: “NÃO INVADA MEU ESPAÇO, NÃO CHEGUE PERTO DE MIM, SÓ OS MEUS ‘IGUAIS’ ME ENTENDEM E O ‘OUTRO’ SÓ CARREGA PRECONCEITOS QUE EU NÃO ACEITO”. No final, o que se produz é um profundo distanciamento entre as pessoas, pois apenas grupos específicos se aceitam. 
 
Diante esse profundo preconceito e distanciamento entre as pessoas, comecei a perceber que o “humor negro” pode ter um papel positivo nessa situação. Por favor compreendam o que eu digo, não estou fazendo apologia à opressão, nem ao racismo ou ao machismo, mas digo que em um ambiente “sem máscaras” identitárias as pessoas se aproximam mais. O politicamente correto ligado em todos os momentos produz distâncias e intolerâncias – o paradoxo extremo é o suposto “emancipado” ser intolerante. E esse é o meu mal-estar com o fanatismo do politicamente correto, as pessoas simplesmente entram no jogo do capitalismo e reforçam uma roda de opressão, sempre excluindo e se distanciando do mundo real, assim nascem Bolsonaros e Trumps ao redor do globo. Eles são uma reação às afirmações identitárias e excludentes, o conservadorismo mascara-se de violência, pois sentem-se ameaçados. O conservadorismo usa a violência para produzir sua própria identidade excludente, no final vemos uma circulo de exclusão em os ambos os lados do fronte. 
 
Na era das “identidades”, nada me tira da cabeça que a forma mais efetiva de lutar contra os “ismos” é adotá-los e subvertê-los, no final devemos mostrar o quão patéticas e engraçadas são essas piadas e que elas não devem ser consideradas como algo “sério”. Jorge Luís Borges já nos ensinou que a ironia é uma forma muito efetiva de se posicionar frente às injustiças. O absurdo é a melhor forma de invalidar qualquer discurso. Tenho certeza que no momento que uma pessoa me conta uma piada de “mal gosto”, sei que posso ser amigo dessa pessoa, pois abolimos as distâncias entre nós e nos apropriaremos de qualquer discurso da maneira mais libertária que quisermos.

Finalizo com uma música que traduz muito bem esse movimento, afinal foi ela que me propiciou essa reflexão.

E procurando se encontrar, pessoas se perdem. Há sempre aquele medo em torno do que vão dizer, mas ser inadequado é muito bom para romper padrões que ditam o que fazer e como agir. Estou tão cansado desses grupos que ao invés de tentar criar uma união por nossos pensamentos iguais, não respeitam as diferenças, preferem excluir. Eu tenho que aceitar mais um clichê para seguir? Quem é você é quem você quer!?” 
 


1Esse é um estudo de caso bem interessante, pois a autora analisa a discursividade dos movimentos sociais no nordeste. Costa, Mônica Rodrigues, Movimentos sociais e experiências emancipatórias. Revista Emancipação, 2015: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/7712
2Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, vol. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997

terça-feira, 28 de novembro de 2017

[Crônica] Isaac Asimov e uma breve reflexão sobre a revolução da leitura no século XXI



Em um livro de 1955, O Fim da Eternidade (The End of Eternity), o renomado escritor Isaac Asimov (autor de mais de 500 livros sobre quase todos os assuntos existentes naquele período) narra a história de Andrew Harlam, um Técnico da Eternidade. Para quem lembra da animação Esquadrão do Tempo (Time Squad, 2001) do Cartoon Network, os paralelos são os mesmos: a função do Técnico é realizar mínimas mudanças no tempo para realizar alterações na realidade, assim a instituição denominada Eternidade regula atividade de todos os séculos dentro de seu campo de ação, orientando as mudanças para o caminho que eles denominam como “o certo”. Em uma trama lotada de “plot twists”, Asimov trabalha diversas teorias cientificas sobre o tempo, realidade e relatividade, de fato esse é um ponto muito rico da literatura de Ficção Cientifica. 

Para além da trama, algo que Asimov trabalha muito bem em todos os seus livros, o que mais me chama atenção em O Fim da Eternidade é a capacidade que autor tem de inferir previsões concisas sobre o futuro. Convenhamos que não é pouca coisa prever uma rede de comunicações que ignora barreiras geográficas em 1949, coisa que ele faz com a maior naturalidade na sua obra prima, a trilogia Fundação (Foundation). Asimov tinha a plena certeza de que as mudanças na tecnologia influenciavam na forma como nós construímos e representamos o mundo, isto é, conforme as tecnologias ao nosso redor mudam, nossa forma de encarar o mundo também muda. Creio que este seja um ponto que nós, como seres humanos inundados por tecnologias, devemos sempre refletir sobre.

Imagem conferida em http://homoliteratus.com/wp-content/uploads/2016/02/Asimov.jpg
 
Desta forma, nada mais natural que atos cotidianos mudem completamente de significação ou até mesmo de materialidade! Agora chego ao ponto que gostaria de tratar: a revolução na leitura. Gostaria de esclarecer que aqui trato com um amplo conceito de leitura, ou seja, tudo aquilo que entramos em contato, decodificamos seu código e refletimos sobre seu conteúdo. Creio que estamos passando por um processo que está sendo mal compreendido por muitos de nós, se trata de uma mudança no suporte da leitura. Não apenas podemos ler em objetos eletrônicos, como smartphones e tablets, mas se trata de uma mudança mais drástica, a leitura não se trata mais de entrar em contato com a palavra impressa, mas se dá por novas linguagens, tais como vídeos e jogos.
Asimov demonstrou isso muito bem quando descreve as bibliotecas em O Fim da Eternidade, não existem mais impressos, apenas rolofilmes que sintetizam a ideia do livro através de um vídeo holográfico. O cara já tinha algo similar ao YouTube na cabeça em 1955! Portanto não acho que deva ser uma ideia assombrosa para nós, acho que o mal estar reside nos ambientes letrados que classificam outras visões de mundo como alienadas e acham que a Globo realmente controla a opinião pública. Digo categoricamente que não, cada um constrói o mundo de acordo com suas influências e gostos, e mais, a internet possibilitou uma reflexão na leitura, na decodificação de conteúdo. 

Não sou apocalíptico, não vejo essa mudança como “a morte do livro impresso” (apesar da atual situação do mercado editorial1) ou da palavra escrita, até porque existem pessoas como eu que ainda se apegam muito ao produto editorial. Apenas atesto uma mudança absurda nas formas de apreensão e reflexão sobre o mundo, devido à ampliação de acesso às novas tecnologias, assim como uma liberdade de escolher a linguagem que mais lhe convém.

Contudo também não acho que toda essa liberdade seja um mar de rosas, mas a questão reside no nível do mercado, o que é algo delicadíssimo. Assim como no mundo dos impressos temos a opção de ler Graciliano Ramos e, a despeito disso, acabamos por ler J. K. Howling, no mundo das diversas linguagens de leitura (leia-se internet) também temos a opção de ver melhores ou piores vídeos, ou jogar melhores ou piores jogos. E bem, isso é normal, num mundo em que o capitalismo está estruturado de tal forma que ele trabalha em cima dos nossos mais íntimos desejos, e joga na nossa cara aquilo que possivelmente nos agradará, ou mais, que produz objetos com maior apelo mercadológico possível, bem, sim, é normal desde o século XIX. Porém, não acho que tal presença do mercado anule a experiência, acho que aprendemos a jogar de acordo com as regras do jogo, é possível criar em cima das imposições. Com certeza o mercado influencia, mas no final cada um escolhe aquilo que lhe convir, e tenho certeza que conforme a vida de leitor se aprofunda a consciência crítica também se desenvolve. O que não significa que devemos esperar que todo mundo leia (lembrando que estou trabalhando com o amplo conceito citado acima) só coisas de “bom gosto”, até por que sabemos que essa é uma categoria ilusória e excludente. 

Nesse sentido, o YouTube é uma enciclopédia e World of Warcraft é um Senhor dos Anéis. Agora sobre uma verdadeira educação tecnológica… esse é assunto para um próximo texto. 

Notas

1“Mercado editorial encolhe mais de 20% em três anos, revela Fipe” [http://cultura.estadao.com.br/blogs/babel/mercado-editorial-encolhe-mais-de-20-em-tres-anos-revela-fipe/]; Contudo, mediante à esse “encolhimento”, devemos ter em mente a democratização do acesso, tais como sites piratas aonde podemos encontrar diversos PDFs, assim como a difusão das tecnologias que nos permitem ler a palavras impressas/escritas sem ser necessariamente através de produtos editoriais.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

[Poema] Oceano

Escuro
Pesado
As profundas trevas do
Eterno oceano
Oculto de toda
inteligência
Em suas sombras
rastejam os mistérios
Do inimaginável.




[Poema] Perdidos

CABEÇAS GIRANDO
transições descabidas em meios inóspitos
CORPOS SE CONTORCENDO
e fogo queimando, ardendo, derretendo.

Mãos machucadas
sangue escorre do incicatrizável
véu de luz e podridão
sem choro e sem diapasão

Vida longa...
muitos anos em um
muitas vidas em duas

Sem final, sem conclusão
vazio e dispersão
inviável maldição.

[Conto] O jovem mago


O mago se sentia perdido. Seus olhos não brilhavam mais, sua juventude e inexperiência resultavam em profunda insatisfação com a vida e seus desdobramentos. Para ele, a humanidade – da qual ele fazia ele também era membro – não passava da aglomeração de seres sujos. Ele não enxergava empatia ou sincronia naquela massa amorfa e indulgente. 

“Humanos...”, essa existência o incomodava. Seus pensamentos construíam catedrais de ódio, ele não suportava mais a inadimplência desses seres em relação ao mundo que viviam. O mago torcia o nariz toda vez que via o caos emanado pelas aglomerações humanas. Sua indignação crescia ao encarar o profundo narcisismo proferido por esses seres, principalmente quando encarava a mentira do “indivíduo”. Ele pensava, “...como esses ignorantes podem ser tão arrogantes ao ponto de achar que o tal “Eu” deles significa alguma coisa para esse mundo? Toda essa divisão que eles criam não existe, tudo nesse universo é uma e só existência. O ‘eu’ também é um ‘outro’, o ‘mundo’ é parte mim e ‘eu’ parte mundo! Não passam de palavras ilusórias que não refletem nada...”. 

Imagem conferida em: http://www.delightgamesllc.com/art/
O jovem mago estava impaciente, ele sentia ódio e nenhum de seus aprendizados, nenhuma de suas conversas com os antigos mestres e deuses acalmava o seu coração tempestuoso. As energias ao seu redor começaram a distorcer toda a realidade. Ele sentia fortemente todos os fluxos de sentimentos e pensamentos que passavam por ele. Nada passava despercebido. Muitas vezes a sua energia era sugada, pois o desespero lhe impedia de controlar plenamente os seus poderes. Ele estava em crise, sua jovem existência não conseguia lidar com o ódio e as trocas de energia. 

“As cidades são monstro, humanos não são melhores que vampiros!”. Com esse pensamento formulado, sua decisão seguinte foi a de se afastar. Seu coração machucado não aguentava, ele precisava da cura de suas amigas curandeiras: as árvores. Em meio às grandes florestas, isolado de toda a civilização, o mago trocava energias com as velhas forças da vida. Ele aprendeu mais com as árvores do que com humanos. Os padrões aleatórios e retorcidos dos troncos e galhos imitavam a existência. Tal exuberância encantava o jovem mago, ele conversou por meses com as árvores, em um profundo estado de meditação, aonde suas energias cresciam, assim como o seu aprendizado, pois as árvores eram faladeiras, seus padrões contam a história da vida. 

Acalmado de seus profundo desespero, novamente em posse de si mesmo, o mago rumou para cidade, mais poderoso do que havia partido. Ao invés de ódio, o que preenchia seu coração era uma profunda misericórdia. Ele ouvia uma voz gritando dentro de si: “… meu trabalho é ensiná-los, ou seja, devo aprender com os humanos. Eles ainda não aceitaram seu caminho enquanto seres viventes, então, tomarei essa missão para mim. Abrirei os olhos deles, quero que eles se enxerguem, assim eles contemplarão o mundo!”.

terça-feira, 28 de março de 2017

[Conto]O Ornitoborgue

Nascido das terríveis experiências seculares do inescrupuloso cientista Enclasum, o Ornitoborgue é um ser hibrido com poderes inimagináveis. Todo esse poder, uma mescla da mais alta sofisticação tecnológica com as misteriosas forças da natureza, geraram uma tremenda confusão na consciência do Ornitoborgue.

Enclasum iniciou as experiências quando sequestrou um grande ornitorrinco que chamava sua atenção. A imensidão e os poderes naturais do ser híbrido são notáveis. Esse ornitorrinco em especial resulta da mistura de várias espécies, o que gerou uma forma de vida peculiar na linha evolutiva: tamanho e peso desproporcionais (ele é muito maior que os seus irmãos da mesma espécie), super força, capacidade de voar de dar gigantescos saltos e, o que mais chamou a atenção de Enclasum, dono de misteriosos poderes sobrenaturais. 

Primeiramente Enclasum raptou o grande ornitorrinco, separando-o de sua família, aonde nunca mais seria recepcionado como um igual. O jovem ornitorrinco ainda era ingênuo, não havia desenvolvido sua consciência, coisa que só iria acontecer após infindáveis experiências articuladas pela frieza calculada e racional do cientista. Enclasum iniciou seu teatro maligno ao acoplar novos aparatos tecnológicos no corpo do ornitorrinco, depois realizou alterações em seu cérebro. Uma consciência confusa, caótica e plural nasceu no momento em que o ornitorrinco se imaginou enquanto ser pensante e vivente. 

Após mais algumas alterações no corpo do ornitorrinco (tais como membros mecânicos ligados diretamente ao cérebro, armas devastadoras espalhadas por todas as partes do corpo, inteligência artificial programada de acordo com a vontade de Enclasum), o seu pensar sobre si mesmo estava muito tempestuoso. O ornitorrinco tinha noção de sua forte herança, sabia que estava ligados aos antigos ornitorrincos que lhe deram origem, mas ao mesmo tempo, devido as alterações de Enclasum, parte de sua consciência lhe obrigava a seguir cegamente os desígnios de seu mestre. 

Enclasum nomeou seu experimento de Ornitoborgue, o híbrido. O grande poder natural desse magnifico ser se mesclou com a alta sofisticação tecnológica, esse processo custou a sanidade do frágil Ornitoborgue. Todo esse grande poder estava preso pelas poderosas redes de Enclasum. Não havia meio de escapar, mesmo que parte da consciência do Ornitoborgue se rebela-se e luta-se contra os desígnios de Enclasum, a outra parte suprimia todos esses impulsos e conformava a mente do híbrido, fazendo-o responder à todas as vontades de seu mestre, ao ponto de ele querer ser como Enclasum, considerando-o um ser superior, um exemplo de forma de vida perfeita. 

Arte conferida no devianart: http://albinostick.deviantart.com/art/cyborg-platypus-132116016

Enclasum abusava de seu controle, obrigava o poderoso ser à realizar genocídios, destruir terras e paisagens, subjugando diversos territórios ao domínio do cientista inescrupuloso. Enclasum tinha o sonho de controlar o mundo, afim de erigir seu império, se tornando cada vez mais rico. Parte da mentalidade do Ornitoborgue seguia as ordens de Enclasum cegamente, seguindo a eterna promessa de um dia ser como o seu superior mestre. A outra parte de sua mente chorava com os caminhos que os laços de Enclasum o obrigavam a seguir. 

Devido aos conflitos mentais, o Ornitoborgue se tornou um ser extremamente individualista, ele não conseguia enxergar outras formas de vida como iguais: o seu mestre era tido como o ser superior e tudo se devia à ele. Agora o híbrido dependia completamente do seu mestre, e essa foi a estratégia mais cruel de Enclasum que, ao acoplar vários aparatos tecnológicos em seu corpo, fez o Ornitoborgue depender eternamente de sua manutenção: essa era a forma mais eficaz de controlar a mente conflitante do frágil ornitorrinco. E exatamente por saber que seria “consertado” por seu mestre, o Ornitoborgue não contia esforços em suas missões, ele desperdiçava seus recursos sem restrições. Isso só lhe causava mais destruição e mais conflito em sua mente, pois a cada manutenção, a cada atualização de seus aparatos, Enclasum reforçava o seu controle.

O Ornitoborgue segue realizando atrocidades em nome de Enclasum. Sua mente está esfacelada, não há qualquer resquício de unidade. Os fragmentos remanescentes lutam entre si afim de descobrir quem tomará o controle. Contudo, a individualidade desse frágil ser não passa de uma carapuça vazia, um depositário dos desejos de Enclasum.

quinta-feira, 16 de março de 2017

[Conto]Deus não vai aparecer quando todas as luzes morrerem


“Quanto tempo faz? Já estou aqui há dias, não, semanas… Meu corpo se esvaí a cada movimento. Sinto que estou perdido. Essa tempestade não para, e os monstros não param de aparecer”.

No lugar aonde estava não havia tempo para pensamentos. A Tempestade, brutal maldição, assola as terras da fronteira pela eternidade, graças a ela não é possível distinguir o dia da noite. Ventos poderosos e gotas de água cortante se batiam contra seu corpo, só lhe era permitido enxergar, em meio à plena escuridão da Tempestade, devido ao brilho dos relâmpagos que se chocavam contra a terra rochosa e lamacenta. 

Monstros flutuantes, feitos de eletricidade, apareciam a todo instante. Eram invocações de Vain, o feiticeiro imortal – as terras da fronteira eram seu lar e, de lá, ele comandava os exércitos demoníacos que assolavam o mundo com caos e guerra. Reybold, o capitão da guarda divina, era um homem obstinado e foi escolhido para realizar uma missão: invadir as terras da fronteira e encarar Vain. 

“Preciso lutar, preciso seguir em frente! Vou acabar com Vain, vou acabar com as ameaças do mundo. O medo não perpetuará! Mesmo que toda a esperança tenha me abandonado, mesmo que todo o meu exército de mil homens tenha perecido, eu vou seguir em frente. Deus! Por que você não me ajuda? Por que você não me deu força para proteger meus homens? Por que você não os protegeu?”.

Contudo, as certezas de Reybold começavam a se fragilizar. Ele lutava contra os monstros elétricos ao mesmo tempo que lutava contra sua própria consciência. Seus olhos já não viam brilho no mundo, apenas morte e sangue coloriam aquela paisagem. Começará a duvidar dos deuses e de toda a sua carreira militar, mais de 15 anos supostamente a serviço de Deus. Sua cabeça tempestuava e girava, assim como sua espada que atravessava os monstros com golpes brutais. Sua dança era caótica e confusa, seus pensamentos só lhe traziam mais desespero. 

“Como pode um Deus permitir que haja tanto sofrimento em nome dele? QUINZE ANOS! Quinze anos lutando em prol de um Deus que nunca me respondeu. Quantos monstros já não matei? Quantos demônios não exorcizei? Nunca recebi ajuda de Deus nenhum, apenas eu e meus companheiros expurgamos o mal da nossa terra suja e abandonada! Meus companheiros… Todos mortos agora. MALDITOS MONSTROS, saim do meu caminho, não importa se Deus me abandonou, ou se nunca existiu, vou vingar meus companheiros!”.

Um ideal se acendeu em seu coração, um fogo intenso alimentado por um único objetivo: vingança. Alimentando esse fogo, ele não mais sentiu o buraco em seu peito que arrasava suas emoções, também não sentiu mais suas roupas e armadura manchadas com sangue. 

Reybold lutou por horas, sem cessar ou descansar, os corpos se amontoavam enquanto ele abria caminho pela escuridão da Tempestade. Sua fúria, seu ódio, seu desejo por vingança lhe impulsionavam e acalmavam sua mente. Nada existia além de sua vingança, sua concentração se espalhava por todo o corpo, ele se sentia um com sua espada que dançava desferindo golpes letais. 

Dias se passaram com a luta de Reybold, e então, em determinado dia, assombrosamente, se abriu um buraco no céu de onde saia uma luz vermelha sangue. Desse buraco descia uma figura envolta em trevas encandecestes. Com um movimento de seu cajado, todos os monstros elétricos sumiram. A chuva não o tocava, parecia que ela o respeitava, se desviando por onde aquela figura negra passava. Não era possível ver seu rosto, mas sua voz retumbou como um trovão. 

- Bravo guerreiro! Reconheço sua força, já fazem dias que você está em sua jornada incansável, lutando sem trégua contra os meus monstros. Agora, aqui estou. Sou Vain, o senhor do medo, vim lhe entregar seu presente final.
Reybold não era mais capaz de articular palavras, seu pensamento se transformará numa espiral de ódio, a vingança era o único brilho que sua mente mantinha. Mas seu corpo e alma reconheceram o som “Vain”. Uma força animal lhe dizia instintivamente para atacar, essa “ordem” lhe dizia para ser o mais brutal possível contra aquela sombra envolta em medo. Reybold se desembestou a correr, com a espada em riste e ódio no olhar desvairado. 

Vain se dignou apenas a levantar seu cajado, com esse mínimo ato ele suspendeu Reybold no ar.

- Pobre homem. A bravura e a loucura andam de mãos dadas. Fique feliz, você vai morrer agora e não haverá nenhum julgamento para sua alma. Você simplesmente desaparecerá, como o nada que você é! Nenhum deus vai vir te salvar, pois eu sou o único deus desse mundo. Eu sou o medo e a morte, Reybolt. Eu sou tudo o que vocês mais temem desde a aurora dos tempos: o desconhecido. Estou aqui para livrar o mundo de vocês, homens imundos. Vocês não me deixaram escolha, com toda a maldade e loucura que exalam… TENHO QUE EXTERMINÁ-LOS! Vocês são um erro da natureza. 

Com essas palavras, a energia cósmica denominada Vain disferiu um raio negro que desintegrou o corpo de Reybolt. O silêncio voltou a reinar, apenas se ouvia a chuva que era o prelúdio do crepúsculo da humanidade.

domingo, 5 de março de 2017

[Conto]Balbúrdia dos Sentimentos


Algumas palavras especificas me chamam muita atenção: solidão e distância. Não entendo exatamente qual é a magna diferença entre elas, pois uma leva a outra e vice-versa. Posso ser distante mesmo presente, assim como posso ser solitário enquanto acompanhado. Procuro racionalizar essas impressões para que elas não sejam simples fragmentos espalhados pelo ar da minha mente. Mas não tenho muito sucesso, confusão, caos, bagunça, esse é o fluxo do meu sentir e pensar.

Tenho uma pessoa presa na minha consciência. Não sei se ela existe. Não sei se o que sinto é apenas uma impressão ou empirismo. Não sei se o que lembro é ela ou o que eu construí como ela. A figura do teatro rodeia minha cabeça, aonde tudo se desenrola numa narrativa que só eu sei e que só eu conto para mim. Não consigo mais ver o mundo como algo dado, fixo e existente, mas o vejo como uma cadeia interpretativa, aonde nada existe, apenas as impressões e representações.

Lembro dela, lembro de enxergá-la com meus olhos, é uma lembrança viva, com tanta beleza, tantas cores, tantas molduras. Mas não sei mais se lembro dela, ou se lembro da minha visão. Sinto um buraco no peito, e ele nunca vai ser fechado. É minha noção de vazio, é a sensação de saber que tudo está errado. Não detenho as rédeas da minha vida, ela segue por caminhos que nunca vou imaginar: essa noção gera um misto de ansiedade com vontade de saber. 
Sinto falta dela… sinto falta de toques vivos, de cheiros bons, de sensações em todo o meu corpo… Mas não sei se seria bom para ela. Por mais que eu saiba o que fazer para curá-la, também sei que não consigo. Um espirito me chama (ou seria um demônio?) a seguir um caminho que não controlo. Desejo ser mais do que eu, mas também desejo me isolar em mim mesmo. 

Contradição, indecisão, dúvidas. Tópicos que regem minha existência. Não consigo me mover, não consigo tomar as rédeas do meu caminho. Estranhamente gosto de ser um mero observador. O meu sentido da visão, o meu sentido de multidão, me faz enxergar a vida como um filme, um teatro que se desenrola enquanto eu, confortavelmente sentado em minha poltrona, assisto aos sucessivos números que me parecem distantes e irreais. Por isso ainda me pergunto... minhas lembranças dela são reais? Meu desejo de estar com ela é de verdade? Minha vontade de chorar em seus braços não é ilusão?

Sinto as pessoas, infelizmente sinto elas muito bem. Consigo captar os pensamentos delas ao meu redor, mesmo que eu não tenha vontade alguma, o meu sentimento de multidão ouve e assimila tudo como parte de mim. Aqui há uma diferenciação muito importante, enquanto aquele que vê, consigo me manter distante; enquanto aquele que ouve, sou envolvido por sentimentos que não são os meus. Mas eu não consigo mais entender se isso tudo é um grande mal entendido. Será que o que penso sentir das outras pessoas não é uma mera extensão de mim? Sinto ou simulo?

[Crônica]Cigarros do Paraguai


Meu avô vendia cigarros, não quaisquer cigarros, mas aqueles contrabandeados do Paraguai. Essa era a fonte de renda complementar dos meus avós, o que vinha para suprir o buraco que a aposentadoria não cobria. Meu avô, senhor Manuel, vendeu seus cigarros por anos em um ponto de ônibus, localizado na praça atrás da escola aonde estudei meu primário. Acontece que todo mundo tinha o meu avô em alta consideração, pois além de ele estar postado em um ponto privilegiado do bairro, ele também era bom de conversa. 

Meus avôs vieram do Pernambuco para São Paulo em meados dos anos 60, se estabilizaram-se por aqui na segunda vinda. Duvido muito que meu avô imaginou que terminaria sua vida vendendo cigarros do Paraguai. Pelo o que conheço de muitas histórias, ele já tinha sido segurança, operário, atendente de locadora, e muitas outras coisas, contudo finalizou sua vida como “Seu Mané do cigarro”. Muito do o que me intriga é o fato de meu avô ter comparecido no velório de muitos falecidos clientes, vítimas do cigarro. Acho que ele encarava como uma espécie de fardo, ou ultima missão, pois sempre me pareceu que lhe era penosa essa profissão. 

Minha mente, assim como minhas representações identitárias e temporais, não me permitem compreender o porque meus avós iam tanto nos enterros e velórios dos falecidos. As vezes eles nem conheciam muito bem a pessoa, mas iam mesmo assim, quase como que para bater um ponto. Nisso lembro-me de uma ilustre frase da minha avó, com mais ou menos essas palavras (cito de memória): “compareço em todos os enterros porque quando eu morrer quero muitas pessoas no meu”. O silêncio do meu avô, perante essa afirmação, demonstra que ele não só concordava como era cúmplice dessa opção fúnebre. Posso atestar que os dois conseguiram o que desejaram, os velórios de ambos foram bem lotados. 

O “Seu Mané” vendeu seus Eights, Gifts, Tês, Santiagos, Vila Ricas até suas ultimas semanas de vida. Ele faleceu subitamente, de um ataque fulminante, creio que sem qualquer sofrimento. Nada me tira da cabeça que ele estava me esperando para morrer. Na época eu já estava fazendo faculdade em Franca e só voltava para São Paulo a cada dois meses. No dia que eu cheguei ele me olhou com espanto e disse “Mas você está aqui?”. Creio que foi uma surpresa, pois sinto que meu avô só estava esperando o momento em que toda a família estivesse em casa para enfim descansar. 

Hoje fumei um Gift enquanto pensava sobre a vida, descaradamente me bateram essas lembranças. Hoje em dia ando tão vazio que a aura mística dos meus avós me encanta, gostaria muito de revê-los para ter uma bela conversa. Desonrei tanto a memória deles, preciso pedir desculpas, não dei o real valor à toda aquela experiência de vida. Queria seus conselhos agora, pois nesse momento me parece que tudo é opaco, que não existe cor nenhuma, sinto que um colapso está para chegar. Queria os braços deles nos meus ombros para me chamarem de besta, e assim me mostrarem a beleza do que pode haver na vida, queria que eles me falassem para não desistir e para ser forte como eles… Mas acho que é tarde demais para querer isso.

Algum dia escrevo uma biografia completa dos meus avós, eu prometo isso, PROMETO. Contudo, nesse momento, o objeto dessa crônica é o de não me permitir esquecer o quanto devo toda minha vida aos cigarros do Paraguai, o quanto devo minha vida ao sacrifício trabalhoso de meu avô.

[Crônica]Prelúdio de um Réquiem


Não quero me meter à crítico literário, só quero deixar minhas impressões que se consolidaram após conflito e análise com alguma leituras prévias. Acho que muitos jovens da minha geração consumiram animes e mangás. Dentre meus amigos consigo citar vários, apenas os mais velhos e antiquados os consideram simples “desenhinhos”. Contudo, me chama atenção como diversos fatores, que eu vejo na sensibilidade de nosso tempo, são articulados nessas narrativas fantásticas. 

Antes tudo gostaria de dizer que compartilho (apesar dos delírios totalizantes) da posição de Joseph Campbell sobre o papel do mito em uma sociedade: ele se presta a ensinar os membros daquele grupo a viverem de acordo com as regras daquele meio. Também me chama atenção um ponto da obra de Mircea Eliade que se presta à demonstrar como a “visão de mundo” de determinado grupo pode ser vislumbrado pela análise do mito. 

Contudo, acho que a proposta que mais cabe para o momento é a do historiador Roger Chartier com o conceito de representação. Se valendo desse conceito, podemos analisar as identificações que os indivíduos fazem com as obras de seu tempo, constituindo um “ser percebido” transmitido pela cultura. Um processo que estrutura a identidade cultural, pois vejo que as obras culturais sintetizam os estados de “espirito” dos consumidores e artistas. 

E também, vamos ter em mente que vivemos em uma sociedade global e interligada através de uma rede: a Internet. Tal globalização atingiu seu ápice no pós-segunda com a bipartição do mundo e o desenvolvimento sem precedentes da tecnologia – assim como caráter integrador da modernização (desenvolvimento econômico, indústria cultural, alto fluxo de importação e exportação e etc...). Não importa o que digam, o projeto de modernização deu certo e há um laço integrador entre as culturas espalhadas pelo globo. Mesmo que as particularidades locais gritem, eu posso assistir, poucas horas depois do lançamento, o episódio de um anime que acompanho semanalmente e, pasmem teoricamente, mediados por agentes fantasmas e ilegais: os fansubs. Essa mediação de um produto artístico dá muito assunto pra qualquer teórico da comunicação. 

Um ponto que tenho certas ressalvas quanto à sua origem, mas que faz muito sentido quando confrontado com a apropriação especifica de cada autor, me faz pensar no conceito de indústria cultural. Olhando por esse prima, é possível entender diversas mudanças técnicas que modificaram a produção cultural e modificaram seu sentido. Muitas vezes a obra de arte é produzida como um mero produto industrial, com razão de mercado e visando o lucro. Não nego que isso acontece, mas caminho de encontro ao por do sol com Walter Benjamin, que quando tratava do cinema, não negligenciou o processo mercadológico e industrial, mas captou uma mudança na sensibilidade dos consumidores.
Agora, me valendo novamente da obra de Benjamin, outro ponto marcante no porque eu vejo animes e mangás como exemplos de tradutores da sensibilidade de nosso tempo se refere a “sensação da multidão”. A experiência de andar por uma cidade grande é muito mais exemplificativa do que qualquer coisa que eu fale: a sensação de vazio ao encarar tantas pessoas anula a experiência e a transforma no momentâneo – a multidão se equivale à um ninguém, tudo o que se sente é a solidão e o confinamento num eu interior. 

Por isso me arrisco a dizer que existe um cultura global compartilhada por todos os que se prestam à assistir uma propaganda na televisão ou ver um outdoor no metro. E dentro dessa cultura global há diversas obras que – ao menos me parecem – transmitem uma parcela das representações de mundo desses consumidores, causando processos de identificação particulares em cada indivíduo. 

Não me leiam mal, eu entendo muito bem que cada um dá o sentido, e apropria, da forma que bem entender os produtos que consomem. E também não estou recorrendo à um estruturalismo capenga e mal fundamentado. Eu só estou querendo dizer que identifico determinados tópicos que se repetem nas narrativas dos animes e mangás. E que, ao meu ver, esses tópicos se referem aos processos de subjetivação e representação que esses consumidores possuem em relação ao mundo. Talvez eu esteja sendo muito influenciado pelo crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht, pois um ponto fundamental de sua obra é o conceito Stimmung, que significa atmosfera ou ambiente, ou seja, um determinado estado de consciência inscrito no tempo que fazem determinados tópicos emergirem nas obras de arte.

Para não ficar abstrato meu raciocínio, agora vou destacar alguns pontos. Coincidentemente esses tópicos estão intimamente relacionados com os valores propagados pelo processo de modernização que se abateu ao longo do mundo: 1) Mistério da consciência e do mundo, algo que apenas o protagonista entende; 2) Mentiras e as fragilização que elas causam nas relações humanas; 3) Superficialidade nas relações pessoais; 4) Ironia e cinismo; 5) Hiper individualismo; 6) Complexo de superioridade e sensação de distância do mundo 7) Fragmentação identitária e constantes transformações. 
Essa imagem reflete muito bem o que quero dizer com fragmentação identitária: ninguém conhece ninguém, pode-se ver, apenas, uma figura ausente que se faz presente.

Encarando dessa perspectiva, se torna muito simbólica a afirmação do personagem Yagami Light (protagonista do anime/mangá “Death Note”): “Eu sou o deus do novo mundo” (Boku wa, shin sekai no kami da). As narrativas fantásticas dos animes e mangás se apresentam como mitos modernos, elas traduzem a demanda de um tempo e a consequente forma de se enxergar o mundo. E é exatamente isso o que quero dizer: o ser moderno, ou (como queiram) pós-moderno, possuí um processo de fragmentação identitária que o distancia do mundo, por isso vejo que existem tantos perfis “fakes” nas redes sociais, ou a prática de cosplay – é exatamente um “brincar de não ser si mesmo”. 

Doideira demais… Esse texto é a abertura de uma série de escritos em que analisarei determinadas obras nipônicas, principalmente as que possuo muito apresso. Mas antes de começar a falar dos animes e mangás propriamente ditos, escreverei sobre o Japão e porque eu, um brasileiro e consumidor virtual, consigo me identificar com ideias produzidas por lá. Novamente apelo para o bom senso, não disse em momento algum que os animes e mangás transmitem esses valores (que na visão de muitos moralistas se encaixam como negativos), muito pelo contrário, quero dizer que eles traduzem muito bem um estado de espirito latente que envolve nossa sociedade globalizada. Tanto que vocês encontraram muitas dessas características em pessoas que nunca se dignaram a prestar atenção nessas obras, ou que as consideram meros “desenhinhos”.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

[Conto]A Cidade e o Pensamento


Andando por essa cidade adentro nos mais escuros becos sem saída. Vezes acompanhado de trilha sonora, vezes ouvindo o ambiente febril. Ando por um terreno irregular, sujo e decadente. Parece que a morte espreita cada centímetro de ar que, filtrado por um céu moribundo, adentra e afeta os pulmões. Por vezes também me sinto preso, as casas feias e bonitas, também presas no meio de edifícios assombrosos, me transmitem uma sensação de vazio. Por vezes parece que ninguém habita essa cidade.
Vale do Anhangabaú, São Paulo, SP - ou simplesmente psychopolis.
Com que facilidade me perco no seio desse monstro! Tantas coisas diferentes resultam em mesmice, assim, não distinguo os caminhos, minha atenção é devorada pela infinitude. Perdido, esse é o estado que me define enquanto caminho por essa cidade. Por vezes, dentro do ônibus ou do metro, vejo milhões de rostos diferentes, mas novamente me perco. Tantos rostos se mostram iguais. Não vejo ninguém e ninguém me vê. No mais, todos eles estão mortos, não são pessoas, são marionetes vazias. Também sou uma marionete vazia, perdido e sem cordas para me guiar.
Sozinho. Também me sinto muito sozinho. Os olhos das marionetes são escuros, não há brilho. A desilusão impera, seguida pela morte de qualquer magia ou mística. Aqui não há qualquer Deus, a todo instante eles nascem e morrem, deixando infindáveis vestígios que afogam os sentidos. Por vezes, em dias inteiros, minha única companhia real são os livros, belos encadernados recheados de reflexões, eles aliviam muito desse peso que derruba minha marionete.
O ódio impera. Raiva, descontentamento, desilusão, angustia. Me sinto um vaso de energias negativas, dentro floresce uma flor maligna, escura e estranhamente bela. O mundo se borra cada vez mais diante de meus olhos sem brilho. Por vezes acho que não vivo e que esse é um grande pesadelo... na verdade, já desisti de tentar saber o que é real ou não.
Aqui nada vive, nada é belo, nada é verdadeiro, nada é justo. O cinza mata a cor e mata a arte. Ouço o suspiro dos anjos e das musas que, muitas vezes, passam por mim e me contagiam com suas explosões. Contudo, tal esplendor é efêmero. O transitório é o palpável, o fugidio é a existência, o momento é tudo. 

Na cidade tudo é recortado, fragmentado, desfocado. Aqui nada é sagrado, há apenas humanos travestidos de marionetes sem cordas. Não há salvação, nem redenção ou reencarnação. Há apenas o interminável ciclo de ser o que se é. E aí reside o pior tormento: tentar conhecer-se ao passo que tudo o que resta é uma narrativa desconstruída.
Ando por essa cidade que, ao mesmo tempo, é o mundo de fora e o mundo de dentro. O mundo corre no externo, assim como corre no interno. Minha cabeça é a prisão, pois assim como me perco nessa cidade, me perco na minha mente. Caminho por um terreno quebrado e sujo, vagueio pelas estradas intermináveis e precárias do meu interior. Por mais que eu perambule por aí e ali, nunca saberei o que se passa, nunca desvendarei o mistério. O pensamento segue um trem para lugar nenhum, e o silêncio se repete. Não há separação, eu sou a cidade.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Abertura de Soslaio

Bem vindo a todos os que se interessarem por esses pedaços de lixo sem qualquer valor estético ou literário. 

Serei o mais breve e objetivo possível: cuidarei desse blog para poder organizar e compartilhar meus pensamentos. Aqui compartilharei contos, crônicas, comentários, análises e artigos. Tudo definido de acordo com o meu gosto.

Sim, serei extremamente egoísta na curadoria desse projeto, nada além do meu interesse adentrará esses portões. Afinal, assim como disse no objetivo, o que mais quero é organizar meus pensamentos, afim de construir pontes e conexões, descobrindo cada vez mais de mim. 

Sou do partido que quanto mais conhecemos de nós, mais aprendemos a encarar o mundo. Também sou do partido que tudo o que experimentamos não passa de uma narrativa que organizamos em nossa cabeça. Ou seja, estou junto com o iluminado filosofo Immanuel Kant, nós não conhecemos as coisas em si, mas apenas os seus fenômenos. E, mais interessante ainda, somente selecionamos aquilo que nos convém dentro de nossa própria narrativa identitária, ou na narrativa que descrevemos o mundo.
Hellblazer, N° 15. (Qual é a distância entre aquilo que representamos e aquilo que, de fato, existe?)

Assim vejo que o ato de escrever é providencial para quem se propõem a viver inserido na sensibilidade que nossos tempos demandam. São tempos doidos, tão doidos quanto as pessoas. Não há mais ruptura entre o saber cientifico e o narrativo, qualquer discurso totalizante foi solapado, os humanos estão a um passo de se tornarem verdadeiros ciborgues, a máquina é integrante dos processos de subjetivação do mundo e as próprias identidades pessoais estão fragmentadas em múltiplos "eus".

No meio dessa doidera, escrever é um porto seguro que pode nos acalmar, relaxar e induzir a reflexão, pois, infelizmente, o que mais vejo é a automatização da vida. Processos não refletidos que se interiorizam em nossas práticas. Praticamente formas de esquecermos que somos um "eu" pensante através de uma identificação com as máquinas. 

Realmente vivo numa Psychopolis...