Um dia muito quente, realmente quente. Eu consigo ver uma névoa
pairando acima das águas, o sol não perdoa nada sob o seu brilho.
Já não sei mais que dia é hoje, fazem anos que iniciei minha
viagem pelas vastidões desse país. Até agora juntei diversos
relatos, mas escrevo para o nada, ou para a eternidade, pois não
deixarei ninguém ler essas palavras. Me acusariam de louco. Ninguém
imagina quão o absurdo e o mítico são reais.
Os motivos que me impulsionaram a começar esta jornada me são
turvos. Depois de todo esse tempo, e de tantos absurdos, minha
memória começou a falhar. Por isso é melhor escrever, não posso
deixar minhas memórias morrerem, tenho uma promessa a cumprir, tenho
um caminho para encontrar.
Por hora estou no meio de uma floresta, beiro um extenso rio que
exala vida. Tudo aqui é vivo e pesado. O ar aqui é denso e não há
como evitar o calor. Diversos insetos voam em minha direção, as
vezes nem percebo quando eles grudam em minha pele. Graças a minha
maldição sou imune à doenças, então nem me preocupo com esses
bichos. Carrego poucas coisas, apenas uma mochila com algumas mudas
de roupa, dois livros que me guiam, mapas, este caderno no qual
escrevo e uma pena. Descobri como fazer tinta utilizando algumas
frutas coloridas, não faço ideia do nome delas. Meu instinto de
sobrevivência apita o tempo todo, por algum motivo instintivo
compreendo as razões de ser desse ambiente, e a cada minuto aprendo
novos meios de sobreviver nessa terra.
Johann Moritz Rugendas - Paisagem na Selva Tropical Brasileira (1830) |
Se não me engano, comecei a andar por essa floresta, beirando esse
rio, depois que um velho me contou a história de uma sereia que vive
nas profundezas dessas águas. Segundo ele, outro amaldiçoado, como
eu, havia procurado essa sereia, e ela havia lhe dado uma pista, um
caminho. Qualquer resquício de verdade me é o suficiente, não sei
para onde ir, então qualquer pista é valiosa, qualquer chance é
ouro.
Não
posso negar que essas águas tem poder, sinto uma vibração densa
emergindo de suas ondas pacificas. Os nativos que encontrei possuem
um profundo respeito por essas águas. Ela é o sinônimo de vida, ou
seja, também é a morte. Eu não gostaria de conhecer a fúria
dessas águas escuras, uma voz me sussurra “cuidado”. Estou sendo
cauteloso, espero não desrespeitar a entidade que aqui habita,
apenas quero sua ajuda.
O
sobrenatural não está me assustando mais, vejo espíritos e
elementais caminhando por todos os cantos. Acho que mudei muito nesse
tempo de viagem, antes de sair eu tinha tanto medo dessas
manifestações, nunca lidei bem com minha capacidade de sentir o
mundo místico. Os espíritos
da floresta estão muito assustados, sei que não é a minha presença
que lhes incomoda, mas algo sutil, algo que não consigo perceber,
devo ficar atento. Esses dias vi uma grande cobra voando em direção
à lua, alguns espíritos montavam suas costas, e todas as entidades
que habitavam a floresta prestaram seu respeito. Ainda não descobri
o que foi aquilo, a próxima vez que um espírito se comunicar comigo
vou lhe perguntar o que foi aquela manifestação. Por
algum motivo a morte não me assusta mais, ela está tão perto que
as vezes sinto sua respiração. Minhas únicas armas para evitá-la
são meus conhecimentos e meu instinto.
Contudo,
não posso me afastar do meu objetivo, preciso encontrar aquela
sereia. Quero voltar a dormir, a minha maldição não me permite
fechar os olhos, sinto o cansaço de todos esses anos pesando em meus
ombros, quero um pequeno descanso. Essa sereia me ajudará,
conseguirei alguma dica valiosa com ela, não posso perder a
esperança.