domingo, 5 de março de 2017

[Crônica]Cigarros do Paraguai


Meu avô vendia cigarros, não quaisquer cigarros, mas aqueles contrabandeados do Paraguai. Essa era a fonte de renda complementar dos meus avós, o que vinha para suprir o buraco que a aposentadoria não cobria. Meu avô, senhor Manuel, vendeu seus cigarros por anos em um ponto de ônibus, localizado na praça atrás da escola aonde estudei meu primário. Acontece que todo mundo tinha o meu avô em alta consideração, pois além de ele estar postado em um ponto privilegiado do bairro, ele também era bom de conversa. 

Meus avôs vieram do Pernambuco para São Paulo em meados dos anos 60, se estabilizaram-se por aqui na segunda vinda. Duvido muito que meu avô imaginou que terminaria sua vida vendendo cigarros do Paraguai. Pelo o que conheço de muitas histórias, ele já tinha sido segurança, operário, atendente de locadora, e muitas outras coisas, contudo finalizou sua vida como “Seu Mané do cigarro”. Muito do o que me intriga é o fato de meu avô ter comparecido no velório de muitos falecidos clientes, vítimas do cigarro. Acho que ele encarava como uma espécie de fardo, ou ultima missão, pois sempre me pareceu que lhe era penosa essa profissão. 

Minha mente, assim como minhas representações identitárias e temporais, não me permitem compreender o porque meus avós iam tanto nos enterros e velórios dos falecidos. As vezes eles nem conheciam muito bem a pessoa, mas iam mesmo assim, quase como que para bater um ponto. Nisso lembro-me de uma ilustre frase da minha avó, com mais ou menos essas palavras (cito de memória): “compareço em todos os enterros porque quando eu morrer quero muitas pessoas no meu”. O silêncio do meu avô, perante essa afirmação, demonstra que ele não só concordava como era cúmplice dessa opção fúnebre. Posso atestar que os dois conseguiram o que desejaram, os velórios de ambos foram bem lotados. 

O “Seu Mané” vendeu seus Eights, Gifts, Tês, Santiagos, Vila Ricas até suas ultimas semanas de vida. Ele faleceu subitamente, de um ataque fulminante, creio que sem qualquer sofrimento. Nada me tira da cabeça que ele estava me esperando para morrer. Na época eu já estava fazendo faculdade em Franca e só voltava para São Paulo a cada dois meses. No dia que eu cheguei ele me olhou com espanto e disse “Mas você está aqui?”. Creio que foi uma surpresa, pois sinto que meu avô só estava esperando o momento em que toda a família estivesse em casa para enfim descansar. 

Hoje fumei um Gift enquanto pensava sobre a vida, descaradamente me bateram essas lembranças. Hoje em dia ando tão vazio que a aura mística dos meus avós me encanta, gostaria muito de revê-los para ter uma bela conversa. Desonrei tanto a memória deles, preciso pedir desculpas, não dei o real valor à toda aquela experiência de vida. Queria seus conselhos agora, pois nesse momento me parece que tudo é opaco, que não existe cor nenhuma, sinto que um colapso está para chegar. Queria os braços deles nos meus ombros para me chamarem de besta, e assim me mostrarem a beleza do que pode haver na vida, queria que eles me falassem para não desistir e para ser forte como eles… Mas acho que é tarde demais para querer isso.

Algum dia escrevo uma biografia completa dos meus avós, eu prometo isso, PROMETO. Contudo, nesse momento, o objeto dessa crônica é o de não me permitir esquecer o quanto devo toda minha vida aos cigarros do Paraguai, o quanto devo minha vida ao sacrifício trabalhoso de meu avô.

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