terça-feira, 28 de março de 2017

[Conto]O Ornitoborgue

Nascido das terríveis experiências seculares do inescrupuloso cientista Enclasum, o Ornitoborgue é um ser hibrido com poderes inimagináveis. Todo esse poder, uma mescla da mais alta sofisticação tecnológica com as misteriosas forças da natureza, geraram uma tremenda confusão na consciência do Ornitoborgue.

Enclasum iniciou as experiências quando sequestrou um grande ornitorrinco que chamava sua atenção. A imensidão e os poderes naturais do ser híbrido são notáveis. Esse ornitorrinco em especial resulta da mistura de várias espécies, o que gerou uma forma de vida peculiar na linha evolutiva: tamanho e peso desproporcionais (ele é muito maior que os seus irmãos da mesma espécie), super força, capacidade de voar de dar gigantescos saltos e, o que mais chamou a atenção de Enclasum, dono de misteriosos poderes sobrenaturais. 

Primeiramente Enclasum raptou o grande ornitorrinco, separando-o de sua família, aonde nunca mais seria recepcionado como um igual. O jovem ornitorrinco ainda era ingênuo, não havia desenvolvido sua consciência, coisa que só iria acontecer após infindáveis experiências articuladas pela frieza calculada e racional do cientista. Enclasum iniciou seu teatro maligno ao acoplar novos aparatos tecnológicos no corpo do ornitorrinco, depois realizou alterações em seu cérebro. Uma consciência confusa, caótica e plural nasceu no momento em que o ornitorrinco se imaginou enquanto ser pensante e vivente. 

Após mais algumas alterações no corpo do ornitorrinco (tais como membros mecânicos ligados diretamente ao cérebro, armas devastadoras espalhadas por todas as partes do corpo, inteligência artificial programada de acordo com a vontade de Enclasum), o seu pensar sobre si mesmo estava muito tempestuoso. O ornitorrinco tinha noção de sua forte herança, sabia que estava ligados aos antigos ornitorrincos que lhe deram origem, mas ao mesmo tempo, devido as alterações de Enclasum, parte de sua consciência lhe obrigava a seguir cegamente os desígnios de seu mestre. 

Enclasum nomeou seu experimento de Ornitoborgue, o híbrido. O grande poder natural desse magnifico ser se mesclou com a alta sofisticação tecnológica, esse processo custou a sanidade do frágil Ornitoborgue. Todo esse grande poder estava preso pelas poderosas redes de Enclasum. Não havia meio de escapar, mesmo que parte da consciência do Ornitoborgue se rebela-se e luta-se contra os desígnios de Enclasum, a outra parte suprimia todos esses impulsos e conformava a mente do híbrido, fazendo-o responder à todas as vontades de seu mestre, ao ponto de ele querer ser como Enclasum, considerando-o um ser superior, um exemplo de forma de vida perfeita. 

Arte conferida no devianart: http://albinostick.deviantart.com/art/cyborg-platypus-132116016

Enclasum abusava de seu controle, obrigava o poderoso ser à realizar genocídios, destruir terras e paisagens, subjugando diversos territórios ao domínio do cientista inescrupuloso. Enclasum tinha o sonho de controlar o mundo, afim de erigir seu império, se tornando cada vez mais rico. Parte da mentalidade do Ornitoborgue seguia as ordens de Enclasum cegamente, seguindo a eterna promessa de um dia ser como o seu superior mestre. A outra parte de sua mente chorava com os caminhos que os laços de Enclasum o obrigavam a seguir. 

Devido aos conflitos mentais, o Ornitoborgue se tornou um ser extremamente individualista, ele não conseguia enxergar outras formas de vida como iguais: o seu mestre era tido como o ser superior e tudo se devia à ele. Agora o híbrido dependia completamente do seu mestre, e essa foi a estratégia mais cruel de Enclasum que, ao acoplar vários aparatos tecnológicos em seu corpo, fez o Ornitoborgue depender eternamente de sua manutenção: essa era a forma mais eficaz de controlar a mente conflitante do frágil ornitorrinco. E exatamente por saber que seria “consertado” por seu mestre, o Ornitoborgue não contia esforços em suas missões, ele desperdiçava seus recursos sem restrições. Isso só lhe causava mais destruição e mais conflito em sua mente, pois a cada manutenção, a cada atualização de seus aparatos, Enclasum reforçava o seu controle.

O Ornitoborgue segue realizando atrocidades em nome de Enclasum. Sua mente está esfacelada, não há qualquer resquício de unidade. Os fragmentos remanescentes lutam entre si afim de descobrir quem tomará o controle. Contudo, a individualidade desse frágil ser não passa de uma carapuça vazia, um depositário dos desejos de Enclasum.

quinta-feira, 16 de março de 2017

[Conto]Deus não vai aparecer quando todas as luzes morrerem


“Quanto tempo faz? Já estou aqui há dias, não, semanas… Meu corpo se esvaí a cada movimento. Sinto que estou perdido. Essa tempestade não para, e os monstros não param de aparecer”.

No lugar aonde estava não havia tempo para pensamentos. A Tempestade, brutal maldição, assola as terras da fronteira pela eternidade, graças a ela não é possível distinguir o dia da noite. Ventos poderosos e gotas de água cortante se batiam contra seu corpo, só lhe era permitido enxergar, em meio à plena escuridão da Tempestade, devido ao brilho dos relâmpagos que se chocavam contra a terra rochosa e lamacenta. 

Monstros flutuantes, feitos de eletricidade, apareciam a todo instante. Eram invocações de Vain, o feiticeiro imortal – as terras da fronteira eram seu lar e, de lá, ele comandava os exércitos demoníacos que assolavam o mundo com caos e guerra. Reybold, o capitão da guarda divina, era um homem obstinado e foi escolhido para realizar uma missão: invadir as terras da fronteira e encarar Vain. 

“Preciso lutar, preciso seguir em frente! Vou acabar com Vain, vou acabar com as ameaças do mundo. O medo não perpetuará! Mesmo que toda a esperança tenha me abandonado, mesmo que todo o meu exército de mil homens tenha perecido, eu vou seguir em frente. Deus! Por que você não me ajuda? Por que você não me deu força para proteger meus homens? Por que você não os protegeu?”.

Contudo, as certezas de Reybold começavam a se fragilizar. Ele lutava contra os monstros elétricos ao mesmo tempo que lutava contra sua própria consciência. Seus olhos já não viam brilho no mundo, apenas morte e sangue coloriam aquela paisagem. Começará a duvidar dos deuses e de toda a sua carreira militar, mais de 15 anos supostamente a serviço de Deus. Sua cabeça tempestuava e girava, assim como sua espada que atravessava os monstros com golpes brutais. Sua dança era caótica e confusa, seus pensamentos só lhe traziam mais desespero. 

“Como pode um Deus permitir que haja tanto sofrimento em nome dele? QUINZE ANOS! Quinze anos lutando em prol de um Deus que nunca me respondeu. Quantos monstros já não matei? Quantos demônios não exorcizei? Nunca recebi ajuda de Deus nenhum, apenas eu e meus companheiros expurgamos o mal da nossa terra suja e abandonada! Meus companheiros… Todos mortos agora. MALDITOS MONSTROS, saim do meu caminho, não importa se Deus me abandonou, ou se nunca existiu, vou vingar meus companheiros!”.

Um ideal se acendeu em seu coração, um fogo intenso alimentado por um único objetivo: vingança. Alimentando esse fogo, ele não mais sentiu o buraco em seu peito que arrasava suas emoções, também não sentiu mais suas roupas e armadura manchadas com sangue. 

Reybold lutou por horas, sem cessar ou descansar, os corpos se amontoavam enquanto ele abria caminho pela escuridão da Tempestade. Sua fúria, seu ódio, seu desejo por vingança lhe impulsionavam e acalmavam sua mente. Nada existia além de sua vingança, sua concentração se espalhava por todo o corpo, ele se sentia um com sua espada que dançava desferindo golpes letais. 

Dias se passaram com a luta de Reybold, e então, em determinado dia, assombrosamente, se abriu um buraco no céu de onde saia uma luz vermelha sangue. Desse buraco descia uma figura envolta em trevas encandecestes. Com um movimento de seu cajado, todos os monstros elétricos sumiram. A chuva não o tocava, parecia que ela o respeitava, se desviando por onde aquela figura negra passava. Não era possível ver seu rosto, mas sua voz retumbou como um trovão. 

- Bravo guerreiro! Reconheço sua força, já fazem dias que você está em sua jornada incansável, lutando sem trégua contra os meus monstros. Agora, aqui estou. Sou Vain, o senhor do medo, vim lhe entregar seu presente final.
Reybold não era mais capaz de articular palavras, seu pensamento se transformará numa espiral de ódio, a vingança era o único brilho que sua mente mantinha. Mas seu corpo e alma reconheceram o som “Vain”. Uma força animal lhe dizia instintivamente para atacar, essa “ordem” lhe dizia para ser o mais brutal possível contra aquela sombra envolta em medo. Reybold se desembestou a correr, com a espada em riste e ódio no olhar desvairado. 

Vain se dignou apenas a levantar seu cajado, com esse mínimo ato ele suspendeu Reybold no ar.

- Pobre homem. A bravura e a loucura andam de mãos dadas. Fique feliz, você vai morrer agora e não haverá nenhum julgamento para sua alma. Você simplesmente desaparecerá, como o nada que você é! Nenhum deus vai vir te salvar, pois eu sou o único deus desse mundo. Eu sou o medo e a morte, Reybolt. Eu sou tudo o que vocês mais temem desde a aurora dos tempos: o desconhecido. Estou aqui para livrar o mundo de vocês, homens imundos. Vocês não me deixaram escolha, com toda a maldade e loucura que exalam… TENHO QUE EXTERMINÁ-LOS! Vocês são um erro da natureza. 

Com essas palavras, a energia cósmica denominada Vain disferiu um raio negro que desintegrou o corpo de Reybolt. O silêncio voltou a reinar, apenas se ouvia a chuva que era o prelúdio do crepúsculo da humanidade.

domingo, 5 de março de 2017

[Conto]Balbúrdia dos Sentimentos


Algumas palavras especificas me chamam muita atenção: solidão e distância. Não entendo exatamente qual é a magna diferença entre elas, pois uma leva a outra e vice-versa. Posso ser distante mesmo presente, assim como posso ser solitário enquanto acompanhado. Procuro racionalizar essas impressões para que elas não sejam simples fragmentos espalhados pelo ar da minha mente. Mas não tenho muito sucesso, confusão, caos, bagunça, esse é o fluxo do meu sentir e pensar.

Tenho uma pessoa presa na minha consciência. Não sei se ela existe. Não sei se o que sinto é apenas uma impressão ou empirismo. Não sei se o que lembro é ela ou o que eu construí como ela. A figura do teatro rodeia minha cabeça, aonde tudo se desenrola numa narrativa que só eu sei e que só eu conto para mim. Não consigo mais ver o mundo como algo dado, fixo e existente, mas o vejo como uma cadeia interpretativa, aonde nada existe, apenas as impressões e representações.

Lembro dela, lembro de enxergá-la com meus olhos, é uma lembrança viva, com tanta beleza, tantas cores, tantas molduras. Mas não sei mais se lembro dela, ou se lembro da minha visão. Sinto um buraco no peito, e ele nunca vai ser fechado. É minha noção de vazio, é a sensação de saber que tudo está errado. Não detenho as rédeas da minha vida, ela segue por caminhos que nunca vou imaginar: essa noção gera um misto de ansiedade com vontade de saber. 
Sinto falta dela… sinto falta de toques vivos, de cheiros bons, de sensações em todo o meu corpo… Mas não sei se seria bom para ela. Por mais que eu saiba o que fazer para curá-la, também sei que não consigo. Um espirito me chama (ou seria um demônio?) a seguir um caminho que não controlo. Desejo ser mais do que eu, mas também desejo me isolar em mim mesmo. 

Contradição, indecisão, dúvidas. Tópicos que regem minha existência. Não consigo me mover, não consigo tomar as rédeas do meu caminho. Estranhamente gosto de ser um mero observador. O meu sentido da visão, o meu sentido de multidão, me faz enxergar a vida como um filme, um teatro que se desenrola enquanto eu, confortavelmente sentado em minha poltrona, assisto aos sucessivos números que me parecem distantes e irreais. Por isso ainda me pergunto... minhas lembranças dela são reais? Meu desejo de estar com ela é de verdade? Minha vontade de chorar em seus braços não é ilusão?

Sinto as pessoas, infelizmente sinto elas muito bem. Consigo captar os pensamentos delas ao meu redor, mesmo que eu não tenha vontade alguma, o meu sentimento de multidão ouve e assimila tudo como parte de mim. Aqui há uma diferenciação muito importante, enquanto aquele que vê, consigo me manter distante; enquanto aquele que ouve, sou envolvido por sentimentos que não são os meus. Mas eu não consigo mais entender se isso tudo é um grande mal entendido. Será que o que penso sentir das outras pessoas não é uma mera extensão de mim? Sinto ou simulo?

[Crônica]Cigarros do Paraguai


Meu avô vendia cigarros, não quaisquer cigarros, mas aqueles contrabandeados do Paraguai. Essa era a fonte de renda complementar dos meus avós, o que vinha para suprir o buraco que a aposentadoria não cobria. Meu avô, senhor Manuel, vendeu seus cigarros por anos em um ponto de ônibus, localizado na praça atrás da escola aonde estudei meu primário. Acontece que todo mundo tinha o meu avô em alta consideração, pois além de ele estar postado em um ponto privilegiado do bairro, ele também era bom de conversa. 

Meus avôs vieram do Pernambuco para São Paulo em meados dos anos 60, se estabilizaram-se por aqui na segunda vinda. Duvido muito que meu avô imaginou que terminaria sua vida vendendo cigarros do Paraguai. Pelo o que conheço de muitas histórias, ele já tinha sido segurança, operário, atendente de locadora, e muitas outras coisas, contudo finalizou sua vida como “Seu Mané do cigarro”. Muito do o que me intriga é o fato de meu avô ter comparecido no velório de muitos falecidos clientes, vítimas do cigarro. Acho que ele encarava como uma espécie de fardo, ou ultima missão, pois sempre me pareceu que lhe era penosa essa profissão. 

Minha mente, assim como minhas representações identitárias e temporais, não me permitem compreender o porque meus avós iam tanto nos enterros e velórios dos falecidos. As vezes eles nem conheciam muito bem a pessoa, mas iam mesmo assim, quase como que para bater um ponto. Nisso lembro-me de uma ilustre frase da minha avó, com mais ou menos essas palavras (cito de memória): “compareço em todos os enterros porque quando eu morrer quero muitas pessoas no meu”. O silêncio do meu avô, perante essa afirmação, demonstra que ele não só concordava como era cúmplice dessa opção fúnebre. Posso atestar que os dois conseguiram o que desejaram, os velórios de ambos foram bem lotados. 

O “Seu Mané” vendeu seus Eights, Gifts, Tês, Santiagos, Vila Ricas até suas ultimas semanas de vida. Ele faleceu subitamente, de um ataque fulminante, creio que sem qualquer sofrimento. Nada me tira da cabeça que ele estava me esperando para morrer. Na época eu já estava fazendo faculdade em Franca e só voltava para São Paulo a cada dois meses. No dia que eu cheguei ele me olhou com espanto e disse “Mas você está aqui?”. Creio que foi uma surpresa, pois sinto que meu avô só estava esperando o momento em que toda a família estivesse em casa para enfim descansar. 

Hoje fumei um Gift enquanto pensava sobre a vida, descaradamente me bateram essas lembranças. Hoje em dia ando tão vazio que a aura mística dos meus avós me encanta, gostaria muito de revê-los para ter uma bela conversa. Desonrei tanto a memória deles, preciso pedir desculpas, não dei o real valor à toda aquela experiência de vida. Queria seus conselhos agora, pois nesse momento me parece que tudo é opaco, que não existe cor nenhuma, sinto que um colapso está para chegar. Queria os braços deles nos meus ombros para me chamarem de besta, e assim me mostrarem a beleza do que pode haver na vida, queria que eles me falassem para não desistir e para ser forte como eles… Mas acho que é tarde demais para querer isso.

Algum dia escrevo uma biografia completa dos meus avós, eu prometo isso, PROMETO. Contudo, nesse momento, o objeto dessa crônica é o de não me permitir esquecer o quanto devo toda minha vida aos cigarros do Paraguai, o quanto devo minha vida ao sacrifício trabalhoso de meu avô.

[Crônica]Prelúdio de um Réquiem


Não quero me meter à crítico literário, só quero deixar minhas impressões que se consolidaram após conflito e análise com alguma leituras prévias. Acho que muitos jovens da minha geração consumiram animes e mangás. Dentre meus amigos consigo citar vários, apenas os mais velhos e antiquados os consideram simples “desenhinhos”. Contudo, me chama atenção como diversos fatores, que eu vejo na sensibilidade de nosso tempo, são articulados nessas narrativas fantásticas. 

Antes tudo gostaria de dizer que compartilho (apesar dos delírios totalizantes) da posição de Joseph Campbell sobre o papel do mito em uma sociedade: ele se presta a ensinar os membros daquele grupo a viverem de acordo com as regras daquele meio. Também me chama atenção um ponto da obra de Mircea Eliade que se presta à demonstrar como a “visão de mundo” de determinado grupo pode ser vislumbrado pela análise do mito. 

Contudo, acho que a proposta que mais cabe para o momento é a do historiador Roger Chartier com o conceito de representação. Se valendo desse conceito, podemos analisar as identificações que os indivíduos fazem com as obras de seu tempo, constituindo um “ser percebido” transmitido pela cultura. Um processo que estrutura a identidade cultural, pois vejo que as obras culturais sintetizam os estados de “espirito” dos consumidores e artistas. 

E também, vamos ter em mente que vivemos em uma sociedade global e interligada através de uma rede: a Internet. Tal globalização atingiu seu ápice no pós-segunda com a bipartição do mundo e o desenvolvimento sem precedentes da tecnologia – assim como caráter integrador da modernização (desenvolvimento econômico, indústria cultural, alto fluxo de importação e exportação e etc...). Não importa o que digam, o projeto de modernização deu certo e há um laço integrador entre as culturas espalhadas pelo globo. Mesmo que as particularidades locais gritem, eu posso assistir, poucas horas depois do lançamento, o episódio de um anime que acompanho semanalmente e, pasmem teoricamente, mediados por agentes fantasmas e ilegais: os fansubs. Essa mediação de um produto artístico dá muito assunto pra qualquer teórico da comunicação. 

Um ponto que tenho certas ressalvas quanto à sua origem, mas que faz muito sentido quando confrontado com a apropriação especifica de cada autor, me faz pensar no conceito de indústria cultural. Olhando por esse prima, é possível entender diversas mudanças técnicas que modificaram a produção cultural e modificaram seu sentido. Muitas vezes a obra de arte é produzida como um mero produto industrial, com razão de mercado e visando o lucro. Não nego que isso acontece, mas caminho de encontro ao por do sol com Walter Benjamin, que quando tratava do cinema, não negligenciou o processo mercadológico e industrial, mas captou uma mudança na sensibilidade dos consumidores.
Agora, me valendo novamente da obra de Benjamin, outro ponto marcante no porque eu vejo animes e mangás como exemplos de tradutores da sensibilidade de nosso tempo se refere a “sensação da multidão”. A experiência de andar por uma cidade grande é muito mais exemplificativa do que qualquer coisa que eu fale: a sensação de vazio ao encarar tantas pessoas anula a experiência e a transforma no momentâneo – a multidão se equivale à um ninguém, tudo o que se sente é a solidão e o confinamento num eu interior. 

Por isso me arrisco a dizer que existe um cultura global compartilhada por todos os que se prestam à assistir uma propaganda na televisão ou ver um outdoor no metro. E dentro dessa cultura global há diversas obras que – ao menos me parecem – transmitem uma parcela das representações de mundo desses consumidores, causando processos de identificação particulares em cada indivíduo. 

Não me leiam mal, eu entendo muito bem que cada um dá o sentido, e apropria, da forma que bem entender os produtos que consomem. E também não estou recorrendo à um estruturalismo capenga e mal fundamentado. Eu só estou querendo dizer que identifico determinados tópicos que se repetem nas narrativas dos animes e mangás. E que, ao meu ver, esses tópicos se referem aos processos de subjetivação e representação que esses consumidores possuem em relação ao mundo. Talvez eu esteja sendo muito influenciado pelo crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht, pois um ponto fundamental de sua obra é o conceito Stimmung, que significa atmosfera ou ambiente, ou seja, um determinado estado de consciência inscrito no tempo que fazem determinados tópicos emergirem nas obras de arte.

Para não ficar abstrato meu raciocínio, agora vou destacar alguns pontos. Coincidentemente esses tópicos estão intimamente relacionados com os valores propagados pelo processo de modernização que se abateu ao longo do mundo: 1) Mistério da consciência e do mundo, algo que apenas o protagonista entende; 2) Mentiras e as fragilização que elas causam nas relações humanas; 3) Superficialidade nas relações pessoais; 4) Ironia e cinismo; 5) Hiper individualismo; 6) Complexo de superioridade e sensação de distância do mundo 7) Fragmentação identitária e constantes transformações. 
Essa imagem reflete muito bem o que quero dizer com fragmentação identitária: ninguém conhece ninguém, pode-se ver, apenas, uma figura ausente que se faz presente.

Encarando dessa perspectiva, se torna muito simbólica a afirmação do personagem Yagami Light (protagonista do anime/mangá “Death Note”): “Eu sou o deus do novo mundo” (Boku wa, shin sekai no kami da). As narrativas fantásticas dos animes e mangás se apresentam como mitos modernos, elas traduzem a demanda de um tempo e a consequente forma de se enxergar o mundo. E é exatamente isso o que quero dizer: o ser moderno, ou (como queiram) pós-moderno, possuí um processo de fragmentação identitária que o distancia do mundo, por isso vejo que existem tantos perfis “fakes” nas redes sociais, ou a prática de cosplay – é exatamente um “brincar de não ser si mesmo”. 

Doideira demais… Esse texto é a abertura de uma série de escritos em que analisarei determinadas obras nipônicas, principalmente as que possuo muito apresso. Mas antes de começar a falar dos animes e mangás propriamente ditos, escreverei sobre o Japão e porque eu, um brasileiro e consumidor virtual, consigo me identificar com ideias produzidas por lá. Novamente apelo para o bom senso, não disse em momento algum que os animes e mangás transmitem esses valores (que na visão de muitos moralistas se encaixam como negativos), muito pelo contrário, quero dizer que eles traduzem muito bem um estado de espirito latente que envolve nossa sociedade globalizada. Tanto que vocês encontraram muitas dessas características em pessoas que nunca se dignaram a prestar atenção nessas obras, ou que as consideram meros “desenhinhos”.