domingo, 5 de março de 2017

[Crônica]Prelúdio de um Réquiem


Não quero me meter à crítico literário, só quero deixar minhas impressões que se consolidaram após conflito e análise com alguma leituras prévias. Acho que muitos jovens da minha geração consumiram animes e mangás. Dentre meus amigos consigo citar vários, apenas os mais velhos e antiquados os consideram simples “desenhinhos”. Contudo, me chama atenção como diversos fatores, que eu vejo na sensibilidade de nosso tempo, são articulados nessas narrativas fantásticas. 

Antes tudo gostaria de dizer que compartilho (apesar dos delírios totalizantes) da posição de Joseph Campbell sobre o papel do mito em uma sociedade: ele se presta a ensinar os membros daquele grupo a viverem de acordo com as regras daquele meio. Também me chama atenção um ponto da obra de Mircea Eliade que se presta à demonstrar como a “visão de mundo” de determinado grupo pode ser vislumbrado pela análise do mito. 

Contudo, acho que a proposta que mais cabe para o momento é a do historiador Roger Chartier com o conceito de representação. Se valendo desse conceito, podemos analisar as identificações que os indivíduos fazem com as obras de seu tempo, constituindo um “ser percebido” transmitido pela cultura. Um processo que estrutura a identidade cultural, pois vejo que as obras culturais sintetizam os estados de “espirito” dos consumidores e artistas. 

E também, vamos ter em mente que vivemos em uma sociedade global e interligada através de uma rede: a Internet. Tal globalização atingiu seu ápice no pós-segunda com a bipartição do mundo e o desenvolvimento sem precedentes da tecnologia – assim como caráter integrador da modernização (desenvolvimento econômico, indústria cultural, alto fluxo de importação e exportação e etc...). Não importa o que digam, o projeto de modernização deu certo e há um laço integrador entre as culturas espalhadas pelo globo. Mesmo que as particularidades locais gritem, eu posso assistir, poucas horas depois do lançamento, o episódio de um anime que acompanho semanalmente e, pasmem teoricamente, mediados por agentes fantasmas e ilegais: os fansubs. Essa mediação de um produto artístico dá muito assunto pra qualquer teórico da comunicação. 

Um ponto que tenho certas ressalvas quanto à sua origem, mas que faz muito sentido quando confrontado com a apropriação especifica de cada autor, me faz pensar no conceito de indústria cultural. Olhando por esse prima, é possível entender diversas mudanças técnicas que modificaram a produção cultural e modificaram seu sentido. Muitas vezes a obra de arte é produzida como um mero produto industrial, com razão de mercado e visando o lucro. Não nego que isso acontece, mas caminho de encontro ao por do sol com Walter Benjamin, que quando tratava do cinema, não negligenciou o processo mercadológico e industrial, mas captou uma mudança na sensibilidade dos consumidores.
Agora, me valendo novamente da obra de Benjamin, outro ponto marcante no porque eu vejo animes e mangás como exemplos de tradutores da sensibilidade de nosso tempo se refere a “sensação da multidão”. A experiência de andar por uma cidade grande é muito mais exemplificativa do que qualquer coisa que eu fale: a sensação de vazio ao encarar tantas pessoas anula a experiência e a transforma no momentâneo – a multidão se equivale à um ninguém, tudo o que se sente é a solidão e o confinamento num eu interior. 

Por isso me arrisco a dizer que existe um cultura global compartilhada por todos os que se prestam à assistir uma propaganda na televisão ou ver um outdoor no metro. E dentro dessa cultura global há diversas obras que – ao menos me parecem – transmitem uma parcela das representações de mundo desses consumidores, causando processos de identificação particulares em cada indivíduo. 

Não me leiam mal, eu entendo muito bem que cada um dá o sentido, e apropria, da forma que bem entender os produtos que consomem. E também não estou recorrendo à um estruturalismo capenga e mal fundamentado. Eu só estou querendo dizer que identifico determinados tópicos que se repetem nas narrativas dos animes e mangás. E que, ao meu ver, esses tópicos se referem aos processos de subjetivação e representação que esses consumidores possuem em relação ao mundo. Talvez eu esteja sendo muito influenciado pelo crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht, pois um ponto fundamental de sua obra é o conceito Stimmung, que significa atmosfera ou ambiente, ou seja, um determinado estado de consciência inscrito no tempo que fazem determinados tópicos emergirem nas obras de arte.

Para não ficar abstrato meu raciocínio, agora vou destacar alguns pontos. Coincidentemente esses tópicos estão intimamente relacionados com os valores propagados pelo processo de modernização que se abateu ao longo do mundo: 1) Mistério da consciência e do mundo, algo que apenas o protagonista entende; 2) Mentiras e as fragilização que elas causam nas relações humanas; 3) Superficialidade nas relações pessoais; 4) Ironia e cinismo; 5) Hiper individualismo; 6) Complexo de superioridade e sensação de distância do mundo 7) Fragmentação identitária e constantes transformações. 
Essa imagem reflete muito bem o que quero dizer com fragmentação identitária: ninguém conhece ninguém, pode-se ver, apenas, uma figura ausente que se faz presente.

Encarando dessa perspectiva, se torna muito simbólica a afirmação do personagem Yagami Light (protagonista do anime/mangá “Death Note”): “Eu sou o deus do novo mundo” (Boku wa, shin sekai no kami da). As narrativas fantásticas dos animes e mangás se apresentam como mitos modernos, elas traduzem a demanda de um tempo e a consequente forma de se enxergar o mundo. E é exatamente isso o que quero dizer: o ser moderno, ou (como queiram) pós-moderno, possuí um processo de fragmentação identitária que o distancia do mundo, por isso vejo que existem tantos perfis “fakes” nas redes sociais, ou a prática de cosplay – é exatamente um “brincar de não ser si mesmo”. 

Doideira demais… Esse texto é a abertura de uma série de escritos em que analisarei determinadas obras nipônicas, principalmente as que possuo muito apresso. Mas antes de começar a falar dos animes e mangás propriamente ditos, escreverei sobre o Japão e porque eu, um brasileiro e consumidor virtual, consigo me identificar com ideias produzidas por lá. Novamente apelo para o bom senso, não disse em momento algum que os animes e mangás transmitem esses valores (que na visão de muitos moralistas se encaixam como negativos), muito pelo contrário, quero dizer que eles traduzem muito bem um estado de espirito latente que envolve nossa sociedade globalizada. Tanto que vocês encontraram muitas dessas características em pessoas que nunca se dignaram a prestar atenção nessas obras, ou que as consideram meros “desenhinhos”.

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