Não
quero me meter à crítico literário, só quero deixar minhas
impressões que se consolidaram após conflito e análise com alguma
leituras prévias. Acho que muitos jovens da minha geração
consumiram animes e mangás. Dentre meus amigos consigo citar vários,
apenas os mais velhos e antiquados os consideram simples
“desenhinhos”. Contudo, me chama atenção como diversos fatores,
que eu vejo na sensibilidade de nosso tempo, são articulados nessas
narrativas fantásticas.
Antes
tudo gostaria de dizer que compartilho (apesar dos delírios
totalizantes) da posição de Joseph Campbell sobre o papel do mito
em uma sociedade: ele se presta a ensinar os membros daquele grupo a
viverem de acordo com as regras daquele meio. Também me chama
atenção um ponto da obra de Mircea Eliade que se presta à
demonstrar como a “visão de mundo” de determinado grupo pode ser
vislumbrado pela análise do mito.
Contudo,
acho que a proposta que mais cabe para o momento é a do historiador
Roger Chartier com o conceito de representação. Se valendo
desse conceito, podemos analisar as identificações que os
indivíduos fazem com as obras de seu tempo, constituindo um “ser
percebido” transmitido pela cultura. Um processo que estrutura a
identidade cultural, pois vejo que as obras culturais sintetizam os
estados de “espirito” dos consumidores e artistas.
E
também, vamos ter em mente que vivemos em uma sociedade global e
interligada através de uma rede: a Internet. Tal globalização
atingiu seu ápice no pós-segunda com a bipartição do mundo e o
desenvolvimento sem precedentes da tecnologia – assim como caráter
integrador da modernização (desenvolvimento econômico, indústria
cultural, alto fluxo de importação e exportação e etc...). Não
importa o que digam, o projeto de modernização deu certo e há um
laço integrador entre as culturas espalhadas pelo globo. Mesmo que
as particularidades locais gritem, eu posso assistir, poucas horas
depois do lançamento, o episódio de um anime que acompanho
semanalmente e, pasmem teoricamente, mediados por agentes fantasmas e
ilegais: os fansubs. Essa mediação de um produto artístico
dá muito assunto pra qualquer teórico da comunicação.
Um
ponto que tenho certas ressalvas quanto à sua origem, mas que faz
muito sentido quando confrontado com a apropriação especifica de
cada autor, me faz pensar no conceito de indústria cultural. Olhando
por esse prima, é possível entender diversas mudanças técnicas
que modificaram a produção cultural e modificaram seu sentido.
Muitas vezes a obra de arte é produzida como um mero produto
industrial, com razão de mercado e visando o lucro. Não nego que
isso acontece, mas caminho de encontro ao por do sol com Walter
Benjamin, que quando tratava do cinema, não negligenciou o processo
mercadológico e industrial, mas captou uma mudança na sensibilidade
dos consumidores.
Agora,
me valendo novamente da obra de Benjamin, outro ponto marcante no
porque eu vejo animes e mangás como exemplos de tradutores da
sensibilidade de nosso tempo se refere a “sensação da multidão”.
A experiência de andar por uma cidade grande é muito mais
exemplificativa do que qualquer coisa que eu fale: a sensação de
vazio ao encarar tantas pessoas anula a experiência e a transforma
no momentâneo – a multidão se equivale à um ninguém, tudo o que
se sente é a solidão e o confinamento num eu interior.
Por
isso me arrisco a dizer que existe um cultura global compartilhada
por todos os que se prestam à assistir uma propaganda na televisão
ou ver um outdoor no metro. E dentro dessa cultura global há
diversas obras que – ao menos me parecem – transmitem uma parcela
das representações de mundo desses consumidores, causando processos
de identificação particulares em cada indivíduo.
Não
me leiam mal, eu entendo muito bem que cada um dá o sentido, e
apropria, da forma que bem entender os produtos que consomem. E
também não estou recorrendo à um estruturalismo capenga e mal
fundamentado. Eu só estou querendo dizer que identifico determinados
tópicos que se repetem nas narrativas dos animes e mangás. E que,
ao meu ver, esses tópicos se referem aos processos de subjetivação
e representação que esses consumidores possuem em relação ao
mundo. Talvez eu esteja sendo muito influenciado pelo crítico
literário Hans Ulrich Gumbrecht, pois um ponto fundamental de sua
obra é o conceito Stimmung, que significa atmosfera ou
ambiente, ou seja, um determinado estado de consciência inscrito no
tempo que fazem determinados tópicos emergirem nas obras de arte.
Para
não ficar abstrato meu raciocínio, agora vou destacar alguns
pontos. Coincidentemente esses tópicos estão intimamente
relacionados com os valores propagados pelo processo de modernização
que se abateu ao longo do mundo: 1) Mistério da consciência e do
mundo, algo que apenas o protagonista entende; 2) Mentiras e as
fragilização que elas causam nas relações humanas; 3)
Superficialidade nas relações pessoais; 4) Ironia e cinismo; 5)
Hiper individualismo; 6) Complexo de superioridade e sensação de
distância do mundo 7) Fragmentação identitária e constantes
transformações.
Essa imagem reflete muito bem o que quero dizer com fragmentação identitária: ninguém conhece ninguém, pode-se ver, apenas, uma figura ausente que se faz presente. |
Encarando
dessa perspectiva, se torna muito simbólica a afirmação do
personagem Yagami Light (protagonista do anime/mangá “Death
Note”): “Eu sou o deus do novo mundo” (Boku wa, shin sekai
no kami da). As narrativas fantásticas dos animes e mangás se
apresentam como mitos modernos, elas traduzem a demanda de um tempo e
a consequente forma de se enxergar o mundo. E é exatamente isso o
que quero dizer: o ser moderno, ou (como queiram) pós-moderno,
possuí um processo de fragmentação identitária que o distancia do
mundo, por isso vejo que existem tantos perfis “fakes” nas redes
sociais, ou a prática de cosplay – é exatamente um “brincar de
não ser si mesmo”.
Doideira
demais… Esse texto é a abertura de uma série de escritos em que
analisarei determinadas obras nipônicas, principalmente as que
possuo muito apresso. Mas antes de começar a falar dos animes e
mangás propriamente ditos, escreverei sobre o Japão e porque eu, um
brasileiro e consumidor virtual, consigo me identificar com ideias
produzidas por lá. Novamente apelo para o bom senso, não disse em
momento algum que os animes e mangás transmitem esses valores (que
na visão de muitos moralistas se encaixam como negativos), muito
pelo contrário, quero dizer que eles traduzem muito bem um estado de
espirito latente que envolve nossa sociedade globalizada. Tanto que
vocês encontraram muitas dessas características em pessoas que
nunca se dignaram a prestar atenção nessas obras, ou que as
consideram meros “desenhinhos”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário