No seio de uma reunião de amigos – cuja
qual estávamos consideravelmente alterados pelos vapores do álcool – nasceu um
dilema com a capacidade de fazer emergir a mais pura essência do ser humano.
Não me lembro da exata concatenação de eventos que fez essa pergunta aparecer
pela primeira vez. Tanto que ela surgiu como uma piada, algo com deliberada
intenção de entreter e divertir os nossos cérebros ébrios. Isso explica o tom
fantasioso da pergunta: supondo que sua vida dependesse de um combate, você
preferiria lutar contra uma morsa ou contra quinze crianças?
Apesar do tom absurdo,
longe de qualquer experiência empírica, o referido dilema expressa uma acurada
contundência, assim, consegue revelar os motivos que regem as individualidades.
Apesar da pergunta oferecer somente duas respostas, deve-se considerar que são
as justificativas os verdadeiros pilares dessa questão. Seja a morsa, sejam as
crianças, cada indivíduo expressa um argumento diferente, um fundamento que
sustenta a sua escolha. Dentro desse argumento, está contida a quintessência, a
síntese da existência, proclamada em forma de valores e imperativos éticos. O
ego, o superego e o id desaparecem sob a ação da linguagem que narra e descreve
as razões de ser da alma.
Diante da profundidade de
tal questão e das complexas teias de respostas, retorno para fática noite em
que tal questão nasceu. Não tenho certeza, mas acho que éramos sete naquela
noite, sete almas perturbadas e incompreensíveis, tanto para si como para os
outros. Cada um, a sua maneira, guardava uma cicatriz no coração, algo que não
conseguia ser dito. Por mais que as palavras fossem abundantes, era impossível
expressar aquela dor. Assim, afogávamos no álcool com o intuito de,
contraditoriamente, fugir e abraçar os nossos demônios.
Após algumas horas de
delírios etílicos, eis que um dos sete se levanta e proclama a grande pergunta
em voz alta, marcada por um tom zombeteiro e irônico – será que nesse momento
ele havia sido proclamado um oráculo dos deuses ou um xamã e proposto a grande
questão? Quem há de dizer? O fato é que a pergunta foi proclamada e todos os
presentes ficaram em aturdidos, sem saber o que responder.
Logo um pandemônio se
instaurou, um verdadeiro caos, todos disputavam a voz e a verdade. Cada um
tentava convencer o outro da melhor forma possível, expondo os seus
incontestáveis argumentos. No entanto, nenhum dos presentes se deu conta de que
mais do que falar para os outros, estavam, na verdade, falando consigo mesmos
enquanto narravam a sua própria verdade, a sua própria cosmovisão.
Uns alegavam que seria
melhor combater a morsa, pois era um oponente isolado, passível de ser
derrotado e menos pavoroso do que quinze crianças. Já outros argumentavam que
quebrariam suas barreiras morais e matariam quinze crianças caso a suas vidas
dependessem disso, além de, claro, crianças serem oponentes menos formidáveis
do que uma morsa.
Reservo-me do direito de
analisar o que cada um respondeu, afinal, isso diz respeito somente ao
enunciador. O ouvinte jamais deve analisar os motivos que regem a alma de
outrem, basta a simples escuta e, em casos extremos, a compreensão. Mas
aproveitarei esse relato para analisar a minha própria experiência, os motivos
que estruturam a minha resposta são tão profundos que ecoam dentro de meu
peito.
Eu escolhi batalhar
contra a morsa. Naquele momento, afirmei resoluto sem pausas para um segundo
pensamento, eu estava exaltado, eufórico e alegre por conta dos néctares de
Baco, no entanto, esse instante de loucura foi o mais lúcido de minha vida. Na
realidade, antes de expressá-la, eu já havia pensado naquela resposta há muitos
anos. Provavelmente desde os primórdios de minha vida. Essa questão tem esse
mérito: revela o que move a alma individual, colocando em palavras informações
e pressentimentos que flutuam dentro do ser e nunca são nomeados. No meu caso,
a batalha contra a morsa era apenas uma alegoria, ela representava a minha
vontade de morte.
Gustave Dore, 1883, THE RAVEN |
Por que lutar contra uma
morsa e não contra as crianças? Para mim era simples, eu não pretendia vencer.
Uma morsa era muito mais forte, podendo chegar até duas toneladas, além de
contar com presas enormes. Bastaria um giro desse imenso animal para acabar com
a minha existência. Dessa maneira, eu aceitaria a morte sem contestar. Caso
algum dia eu seja forçada a escolher entre vida ou morte, a segunda opção com
certeza ganhará. Não tenho ímpeto nem força de vontade para sustentar um
desafio que me deixará vivo. Eu busco a morte, busco o fim. Além disso, creio
que as crianças seriam um tanto quanto mais cruéis do que uma morsa, se é para
morrer que seja com menos sofrimento possível.
Por mais cômico que possa
parecer, essa pergunta e a consequente resposta guardam e expressam a
quintessência da alma. Antes eu nunca havia percebido quando as minhas ações
eram voltadas para a autodestruição, a depreciação de tudo o que amo e vivo, um
abismo desolador que arrasta tudo para si, transformando os materiais
absorvidos em trapos. Esse sou seu, essa é minha existência capenga e patética
que se locomove pelos escombros de um passado tardio e de um futuro em ruínas.
Não há presente, somente me resta ansiar pela morte e pelo fim do vazio que
perscruta a minha alma.
Em suma, mantenho-me
aqui, nessa mesa de bar, fazendo barulho junto com meus companheiros até o dia
em que a morte chegar. Mas e você? Já te perguntaram? Caso sua vida dependesse
de um combate, você preferiria lutar contra uma morsa ou contra quinze
crianças? Suspeito que você não gostaria de ouvir a sua resposta.
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