terça-feira, 8 de outubro de 2019

[Conto] Uma morsa ou quinze crianças?


         No seio de uma reunião de amigos – cuja qual estávamos consideravelmente alterados pelos vapores do álcool – nasceu um dilema com a capacidade de fazer emergir a mais pura essência do ser humano. Não me lembro da exata concatenação de eventos que fez essa pergunta aparecer pela primeira vez. Tanto que ela surgiu como uma piada, algo com deliberada intenção de entreter e divertir os nossos cérebros ébrios. Isso explica o tom fantasioso da pergunta: supondo que sua vida dependesse de um combate, você preferiria lutar contra uma morsa ou contra quinze crianças?

Apesar do tom absurdo, longe de qualquer experiência empírica, o referido dilema expressa uma acurada contundência, assim, consegue revelar os motivos que regem as individualidades. Apesar da pergunta oferecer somente duas respostas, deve-se considerar que são as justificativas os verdadeiros pilares dessa questão. Seja a morsa, sejam as crianças, cada indivíduo expressa um argumento diferente, um fundamento que sustenta a sua escolha. Dentro desse argumento, está contida a quintessência, a síntese da existência, proclamada em forma de valores e imperativos éticos. O ego, o superego e o id desaparecem sob a ação da linguagem que narra e descreve as razões de ser da alma.

Diante da profundidade de tal questão e das complexas teias de respostas, retorno para fática noite em que tal questão nasceu. Não tenho certeza, mas acho que éramos sete naquela noite, sete almas perturbadas e incompreensíveis, tanto para si como para os outros. Cada um, a sua maneira, guardava uma cicatriz no coração, algo que não conseguia ser dito. Por mais que as palavras fossem abundantes, era impossível expressar aquela dor. Assim, afogávamos no álcool com o intuito de, contraditoriamente, fugir e abraçar os nossos demônios. 

Após algumas horas de delírios etílicos, eis que um dos sete se levanta e proclama a grande pergunta em voz alta, marcada por um tom zombeteiro e irônico – será que nesse momento ele havia sido proclamado um oráculo dos deuses ou um xamã e proposto a grande questão? Quem há de dizer? O fato é que a pergunta foi proclamada e todos os presentes ficaram em aturdidos, sem saber o que responder.

Logo um pandemônio se instaurou, um verdadeiro caos, todos disputavam a voz e a verdade. Cada um tentava convencer o outro da melhor forma possível, expondo os seus incontestáveis argumentos. No entanto, nenhum dos presentes se deu conta de que mais do que falar para os outros, estavam, na verdade, falando consigo mesmos enquanto narravam a sua própria verdade, a sua própria cosmovisão.

Uns alegavam que seria melhor combater a morsa, pois era um oponente isolado, passível de ser derrotado e menos pavoroso do que quinze crianças. Já outros argumentavam que quebrariam suas barreiras morais e matariam quinze crianças caso a suas vidas dependessem disso, além de, claro, crianças serem oponentes menos formidáveis do que uma morsa.

Reservo-me do direito de analisar o que cada um respondeu, afinal, isso diz respeito somente ao enunciador. O ouvinte jamais deve analisar os motivos que regem a alma de outrem, basta a simples escuta e, em casos extremos, a compreensão. Mas aproveitarei esse relato para analisar a minha própria experiência, os motivos que estruturam a minha resposta são tão profundos que ecoam dentro de meu peito. 

Eu escolhi batalhar contra a morsa. Naquele momento, afirmei resoluto sem pausas para um segundo pensamento, eu estava exaltado, eufórico e alegre por conta dos néctares de Baco, no entanto, esse instante de loucura foi o mais lúcido de minha vida. Na realidade, antes de expressá-la, eu já havia pensado naquela resposta há muitos anos. Provavelmente desde os primórdios de minha vida. Essa questão tem esse mérito: revela o que move a alma individual, colocando em palavras informações e pressentimentos que flutuam dentro do ser e nunca são nomeados. No meu caso, a batalha contra a morsa era apenas uma alegoria, ela representava a minha vontade de morte. 

Gustave Dore, 1883, THE RAVEN
Por que lutar contra uma morsa e não contra as crianças? Para mim era simples, eu não pretendia vencer. Uma morsa era muito mais forte, podendo chegar até duas toneladas, além de contar com presas enormes. Bastaria um giro desse imenso animal para acabar com a minha existência. Dessa maneira, eu aceitaria a morte sem contestar. Caso algum dia eu seja forçada a escolher entre vida ou morte, a segunda opção com certeza ganhará. Não tenho ímpeto nem força de vontade para sustentar um desafio que me deixará vivo. Eu busco a morte, busco o fim. Além disso, creio que as crianças seriam um tanto quanto mais cruéis do que uma morsa, se é para morrer que seja com menos sofrimento possível. 

Por mais cômico que possa parecer, essa pergunta e a consequente resposta guardam e expressam a quintessência da alma. Antes eu nunca havia percebido quando as minhas ações eram voltadas para a autodestruição, a depreciação de tudo o que amo e vivo, um abismo desolador que arrasta tudo para si, transformando os materiais absorvidos em trapos. Esse sou seu, essa é minha existência capenga e patética que se locomove pelos escombros de um passado tardio e de um futuro em ruínas. Não há presente, somente me resta ansiar pela morte e pelo fim do vazio que perscruta a minha alma. 

Em suma, mantenho-me aqui, nessa mesa de bar, fazendo barulho junto com meus companheiros até o dia em que a morte chegar. Mas e você? Já te perguntaram? Caso sua vida dependesse de um combate, você preferiria lutar contra uma morsa ou contra quinze crianças? Suspeito que você não gostaria de ouvir a sua resposta.

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